terça-feira, 3 de maio de 2016

04.12.1967 - CORAÇÃO DE MÔÇA SALVA VELHO

jornal da tarde
O ESTADO DE S.PAULO
NCr$0,20
Segunda-feira, 4 de dezembro de 1967          Número 590          Ano 2
Com um show de Jô Soares, Elizete e Zimbo trio, serão entregues hoje, no Municipal, os Sacis de cinema e teatro, numa festa de lindas mulheres. Os premiados estão nas págs. 14 e 15.


CORAÇÃO DE MÔÇA SALVA VELHO


O coração de uma môça está batendo desde a manhã de ontem no peito de um velho: era da bancária Ann Darvall, de 24 anos, que morreu ontem, e está mantendo vivo Louis Washkansky, um comerciante de 55 anos, que sofria de um mal cardíaco incurável e estava condenado a morrer dentro de alguns dias. A operação, que é a primeira troca de coração entre sêres humanos que dá certo, foi feita na África do Sul por uma equipe especializada. O velho com o coração nôvo continua sob observação, proibido de falar pelos médicos, mas está passando bem. A história das operações, com a explicação da nova técnica está na pág. 34.


O ÚLTIMO MONARCA ABSOLUTO DA EUROPA FAZ 75 ANOS NA PÁG. 20

CAÇARAM PELÉ, O SANTOS EMPATOU. O S. PAULO TAMBÉM. O CORÍNTIANS SAIU GANHANDO. PÁGINAS 31 e 32.
É bom ser fiador
A indústria da fiança é muito lucrativa e em plena ascenção, apesar de as imobiliárias geralmente não aceitarem os fiadores-profissionais, que quase sempre dão muito trabalho e não pagam quando o locador fica devendo. Nas páginas 10 e 11 contamos a história dessa indústria e de Severino, um nortista que não arranjava casa por falta de fiador. Agora caiu na mão de um profissional.
Sómente três carros chegaram ao fim dos 1.608 quilômetros que fazem a Mil Milhas Brasileiras: o protótipo Interlagos Mark I, de Luizinho Pereira Bueno e Luís Fernando Terra Smith, vencedores; o Mark I de Bird e Marivaldo; e o Porsche 911-S dos portuguêses Nogueira e Andrade. Pág. 17.
Será um recuo?
Sairá foi aconselhado por Daniel Krieger a não se candidatar ao Senado, a fim de que Auro Moura Andrade tenha sua vaga já garantida, daqui a três anos. Até agora quase ninguém sabia dessa pretensão do governador de São Paulo e nem é certo que ela existisse. Pág. 8.



Homem vive
com coração
de uma môça

Êle tem 55 anos e há uma semana só vivia porque uma bomba fazia seu coração bater. Ela, aos 24 anos, feriu-se gravemente num desastre de carro. Os dois foram postos na mesma sala de operações, num hospital da Cidade do Cabo, na África do Sul. Pulmões e corações artificiais os animavam.
Êle, comerciante, já tinha sido desenganado pelos médicos. Tinha poucos dias de vida. Ela, bancária, não tinha salvação. E, assim que ela morreu, os cirurgiões começaram a arrancar os corações dos dois. Puseram o coração da môça morta no peito do velho e êle está vivo até agora, passando bem.

O comerciante Louis Washkansky, de 55 anos, está vivendo com o coração da bancária Denise Ann Darvall, de 24 anos, na Cidade do Cabo, na África do Sul, depois do primeiro transplante de coração bem sucedido no mundo. Denise tinha ficado ferida num desastre de carro e morreu na mesa de operações; seu coração foi imediatamente retirado e pôsto em Louis.

A operação foi realizada no Hospital Groote Schurr, na Cidade do Cabo, e durou cinco horas, na madrugada de Sábado para domingo. Louis Washkansky, comerciante judeu, sofria do coração e tinha poucos dias de vida, disse o supervisor-médico de Groote Schurr, Jacobus C. Burger. E acrescentou: "O transplante era a sua única e última chance".

O cirurgião-cardiologista professor Chris Bernard, dirigiu a intervenção, auxiliado por outros cinco cirurgiões-cardiologistas e dois neurocirurgiões, mais cinco enfermeiras e dois anestesistas. No teatro de operações havia um total de vinte pessoas, entre elas o chefe do Departamento de Cirurgia do hospital, professor Jan H. Louw, que autorizou a operação e orientou o trabalho, sem dêle participar diretamente.

Denise Ann Darvall, operadora de máquinas de contabilidade num banco da Cidade do Cabo, tinha chegado em estado desesperador ao hospital, depois de ter sido mortalmente ferida num desastre de automóvel. Os dois neurocirurgiões que depois participaram da operação de Louis ficaram ao lado da moça, analisando seu eletroencefalograma.

Assim que o cérebro de Denise parou de transmitir ondas elétricas, isto é, o instante em que ela morreu, os dois neurocirurgiões avisaram os cirurgiões-cardiologista. Ela morreu segundos antes a 1 hora da madrugada; e exatamente à 1 hora da manhã começaram a ser abertos pelos cirurgiões o peito da moça e o do velho que ia morrer se não fôsse a operação.

Tanto ela, enquanto viva, como êle, estavam sendo animados por corações e pulmões artificiais. Às 6 horas da manhã, a operação terminou, depois de o oração mais nôvo ter sido tirado do cadáver da moça e colocado no corpo do comerciante. Um choque elétrico pôs o coração 2 bater. "Foi como dar a partida a um carro", disse o professor Jan H. Louw.


Louis Washkansky, depois de ter sido salvo de morte certa pelo coração de uma morta, passa bem e está perfeitamente consciente; só que tem um tubo enfiado no pescoço, para poder respirar, e não pode falar nada, nem mexer-se. Ninguém fala com êle, nem as enfermeiras, que o fecharam numa sala especial com a instrução de mantê-lo calado e imóvel.

— "A única coisa que pode ameaçar Washkansky agora é que seu corpo não aceite o coração estranho, embora até agora esteja batendo normalmente. Prevenimos a rejeição com esteróides, que acomodam o organismo a corpos estranhos" — disse o supervisor-médico do hospital, Jacobus C. Burger. "Mas a rejeição não tem regras; pode ser lenta ou rápida. Pode ser que daqui a cinco ou dez anos o corpo de Washkansky acabe estranhando o nôvo coração".

Outro perigo seria o sangue coagular, mas Washkansky tem tomado doses de drogas anticoagulantes, para prevenir. Antes, Washkansky estava vivendo, desde o início da semana, com bombas que ajudavam seu coração a bater, "mas isso não podia continuar para sempre", diz Burger. E os médicos tinham concluído que restavam poucos dias de vida a Washkansky, até que ganhou um nôvo coração.

Tarde da noite de domingo, Burger informou novamente que Louis Washkansky continuava passando bem, calado em seu quarto especial, enquanto as enfermeiras tentam impedir que êle faça qualquer movimento. "Mas o período crítico será o dos próximos três dias, como acontece em todos os casos de operação no coração".

Até agora só tinha sido possível substituir partes do coração, por válvulas de plástico. Tentativas de substituir totalmente um coração doente tinham falhado, entre elas algumas realizadas com coração de chimpanzé. O problema para substituir um coração doente por um coração sadio é que êste tem de ser tirado de uma pessoa morta na hora.

A operação na África do Sul não só é a primeira em que um coração humano é substituído por outro coração humano, como também a primeira em que um coração humano é totalmente substituído. O pai de Denise Ann Darvall, a moça que morta salvou um homem com seu coração, autorizou o transplante. Os rins da môça foram implantados num menino de dez anos.


DOUTOR CHRIS E SUA VITÓRIA


TUDO DEPENDE DO CORPO

O dr. Euricledes de Jesus
Zerbini conhece o dr. Chris, o
médico que fêz o transplante
do coração na África do
Sul. Êle acha que o maior
problema vai ser a possível
rejeição do nôvo órgão pelo
corpo. Se isso acontecer, o
paciente morrerá em poucas horas.
Em São Paulo, experiências
de transplante estão sendo feitas
há dois anos, mas só com cães.

O dr. Chris Barnard, chefe da equipe de cirurgiões que fêz o transplante do coração na África do Sul, é bastante conhecido.

O dr. Euricledes de Jesus Zerbini, um dos maiores cardiologistas do Brasil, conheceu o dr. Chris nos Estados Unidos. Lá, êles fizeram juntos um curso de especialização na Universidade de Minneapolis. Depois, voltaram a encontrar-se num congresso medico em Cleveland, em 1964.

─ Êle é realmente um médico cardiologista muito dedicado aos seus estudos, diz o dr. Zerbini.

Essa é a mesma opinião do dr. Norman E. Shumway, chefe da Divisão de Cirurgia Cardiovascular do centro médico de Stanford, que também conheceu o dr. Chris na Universidade de Minneapolis. O dr. Norman, ha duas semanas anunciou um plano para o transplante do coração humano, mas ainda não realizou a operação por falta de uma perfeita combinação entra paciente e doador. Essa combinação é indispensável para a operação, porque o coração perfeito a ser transplantado tem que ter as mesmas dimensões do coração doente que vai ser substituído.

O dr. Norman E. Shumway diz que essa operação realizada na África do Sul significa um avanço de três a cinco anos nos estudos para a criação do coração artificial. E a classificou de "extremamente interessante".

Para o dr. Euricledes de Jesus Zerbini, o maior problema nesse tipo de cirurgia é a possível rejeição pelo organismo do órgão recebido. O organismo humano tende a rejeitar tudo que lhe é estranho. No caso do coração, se êle não fôr mesmo são e não tiver as mesmas dimensões daquele que foi retirado, tende a deteriorar-se. Nesse cado, o paciente poderia viver apenas algumas horas, ou dias.

As experiências com transplante de coração estão sendo feitas nos países mais adiantados do mundo há quatro anos. O dr. De Baker usou o coração artificial, nos Estados Unidos. Uma experiência de transplante de coração de macado para uma pessoa também foi feita nos Estados Unidos, mas não deu certo. O organismo humano rejeitou e o paciente morreu poucas horas depois da operação. Parece ter ficado definitivamente provado que transplante de órgãos de animais para pessoas não dão certo.

─ Aqui em São Paulo ─ explica o dr. Zerbini ─ fazemos experiências há dois anos na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. É uma operação muito mais séria e delicada do que o transplante de rins. Nós aqui trabalhamos apenas em cães. E notamos que os cães tem de ser da mesma raça, com corações de tamanhos equivalentes. Do contrário, não dá certo.

Os transplantes de artérias já não são mais problemáticos no mundo. Experiências têm sido feitas com rins, pulmões, fígados e certas glandulas. Nos transplantes de rim o trabalho é mais fácil por ser feito entre duas pessoas vivas. O homem tem dois rins, e pode viver com apenas um. Antes da troca, são feitos estudos para saber se o organismo aceitará bem o rim transplantado. É preciso que êle seja semelhante ao que vai ser substituido. Os melhores de transplantes são feitos entre irmãos gêmeos, ou entre mãe e filho.

Em fevereiro passado, sabia-se que 600 pessoas em todo o mundo estavam vivendo com rins transplantados. Naquela época, 1100 pacientes tinham recebido um ou mais transplantes de rins.

O grande problema dos transplantes de coração, é que êle só pode ser retirado de uma pessoa que morreu. A operação deve ser feita alguns segundos depois da morte. O processo não é simples. O paciente que vai receber o novo coração é colocado primeiro sob o contrôle de um coração e pulmão automático. É uma máquina que garante o funcionamento normal dêsses órgãos.

Assim que o outro coração é colocado e ligado ao organismo, a máquina é desligada e o paciente passa a viver com o órgão de outra pessoa.

Uma experiência frequentemente feita na Faculdade de Medicina da USP é a retirada do coração de um cão, e depois, a sua recolocação. É o que se chama de auto-transplante. De um cão para outro surge o problema do imuno-alergênico, que é a rejeição pelo organismo da parte que lhe é estranha.

O dr. Zerbini explica:

─ O maior problema da Medicina, portanto, é exatamente conseguir fazer com que o corpo humano aceite o novo órgão como seu e funcione normalmente com êle.

O fato do coração transplantado ser ─ como nesse caso da África do Sul ─ de uma mulher de 24 anos para um homem mais velho, não tem importância. A idade não influi. Indispensável mesmo é o tamanho, que deve ser equivalente, e que o órgão seja são.

Há um outro problema que o dr. Zerbini lembra. Em todo mundo, é proibido tirar órgãos, principalmente vitais como um coração, de uma pessoa que acaba de morrer. Como o transplante é um fato novo, ainda não se cogitou de mudar as leis. Já têm sido feitos muitos transplantes de cadáveres, entre êles o de válvulas aórticas, mas depois de algumas horas do falecimento do doador.

O Estado de São Paulo, segunda-feira, 4 de dezembro de 1967

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