domingo, 15 de maio de 2016

26.07.1978 - Uma menina perfeita, saudável. Nasce o primeiro bebê de proveta.

J2 ─ JORNAL DA TARDE                                               Quarta-feira, 26-7-78 ─ O ESTADO DE S. PAULO


Uma menina perfeita, saudável.
Nasce o primeiro bebê de proveta.

Os médicos sabiam que seria uma menina, mas Lesley, a mãe, quis guardar a espectativa. Se fosse menino, chamaria Patrick, nome de um dos médicos que conseguiram o feito. O parto ─ uma cesariana ─ ocorreu ontem, pouco antes da meia-noite.

A informação divulgada pouco depois da meia-noite de ontem, (horário de Londres) pelo Hospital Geral de Oldham, na Inglaterra, resumia os dados habituais sobre o nascimento de uma criança: é menina, pesa 2,608 quilos, nasceu de uma cesariana. O estado de mãe e filha é excelente.

Só que esta notícia, transmitida imediatamente para o mundo todo, falava do nascimento do primeiro bebê de proveta, ou bebê de laboratório, ou ainda fecundado "in vitro".

A criança fora concebida fora do corpo de sua mãe, Lesley Brown, 32 anos, esposa de um motorista de caminhão. O ginecologista Patrick Steptoe e o fisiologista Robert Edwards, da Universidade de Cambridge, retiraram um óvulo de Lesley, que foi fecundado "in vitro" (numa proveta, ou num frasco de características não divulgadas) com esperma do marido.

Cinco dias depois, o embrião foi colocado no útero de Lesley, que então teve uma gravidez normal.

O bebê era esperado para qualquer momento, com prazo máximo de 18 de agosto. Não se sabe, ainda, o que levou os médicos a realizarem o parto por cesariana. Lesley Brown estava internada num quarto do hospital há várias semanas; aparentemente, a decisão pela cesariana foi tomada ontem mesmo.

Ao que se soube, um único problema com Lesley ocorreu na última etapa da gravidez: um problema no sangue, logo controlado.

Doze anos tentando

A menina agora nascida no hospital de Oldham, na Inglaterra, pode até não ser o primeiro bebê artificial do mundo, mas, pelo menos, sabe-se que a sua vida deve-se a uma técnica que somente o ginecologista Patrick Steptoe, seu criador, conhece. E essa técnica o misterioso Steptoe guarda a "sete chaves", segundo o jornal Daily Mail, de Londres.

Dela, foram revelados apenas os aspectos mais gerais. O próprio parceiro de Steptoe na experiência científica, o fisiólogo Robert Edwards, explicou-os há uma semana:

─ Os fatores-chave da nossa técnica incluem a escolha do momento preciso para a extração do óvulo, bem como os segredos da fertilização e o momento também preciso em que a reimplantação deve ser feita. Foram necessários dez anos de trabalho cuidadoso e não teríamos chegado onde chegamos sem o uso do laparoscópio como Steptoe criou.

O laparoscópio é o aparelho com o qual os dois médicos britânicos retiraram, por um pequeno corte no abdômen, um óvulo do ovário da sra. Lesley Brown. Em seguida, com esperma produzido pelo seu marido, o ferroviário Gilbert, esse óvulo foi fecundado numa proveta por um espermatozóide. A sra. Brown passou ainda por um tratamento hormonal, enquanto o ovo ou zigoto (o óvulo depois de fecundado) ia se autodividindo em células, mergulhado (na proveta) numa solução de nutrientes e soro. Quando o ovo ou zigoto já estava dividido em 64 células (outras versões falam em um número maior) e podia ser chamado de embrião, foi então colocado no útero da mulher. Uns quatro dias durou a fertilização. "As células, reunidas como uvas em um cacho", diz o Daily Mail, "foram implantadas no útero da mãe e começaram a se desenvolver como qualquer outro embrião fertilizado naturalmente".

A experiência começou no ano passado, quando a sra. Brown, de 32 anos, procurou desesperada o consultório de Steptoe, último de uma longa lista de ginecologistas a que havia recorrido. Seu casamento com Gilbert, de 38, estava condenado ao fracasso devido à sua impossibilidade de ter filhos. A sra.Brown sofria de um bloqueio nas trompas de Falópio (tubos muito finos através dos quais os óvulos passam dos ovários para o útero).

Ora, Steptoe, de 65 anos, ginecologista do Hospital Geral de Oldham, no noroeste da Inglaterra, vinha trabalhando há tempos com o fisiólogo Edwards, de 52, exatamente numa técnica para contornar o bloqueio das trompas de Falópio e fazer nascer um bebê de mulher aparentemente estéril. Os dois médicos, no entanto, só haviam conseguido abortos em seus doze anos de experiência. Com a sra. Brown agiram do mesmo modo, mas com maior segurança que das outras vezes.

Os dois médicos pretendiam só anunciar publicamente a sua experiência depois que o bebê nascesse, mas o caso acabou vindo à luz muito mais cedo do que esperavam.

O próprio Steptoe teria contribuído, indiretamente, para isso. Na intenção de garantir o futuro do bebê, o médico aconselhou o casal Brown a vender a exclusividade do direito de entrevistas e fotos ao jornal Daily Mail, que pagou 325 mil libras esterlinas, ou seja, o equivalente a 11 milhões de cruzeiros. Mas o Daily Express, principal concorrente do Mail, acabou descobrindo a história e publicou-a com estardalhaço.

Com o nascimento normal da menina, ontem, os problemas técnicos parecem resolvidos. "Este é um milagre científico", dizem médicos de todo o mundo. Mas restam os obstáculos legais, morais e éticos, para os quais, dizem cientistas, teólogos e planejadores sociais, não há respostas fáceis.

O ginecologista Orlando Penteado Jr., de São Paulo, saúda o acontecimento com entusiasmo. "Muitas portas foram abertas para o futuro", diz ele. Mas outros médicos brasileiros ainda encaram com ceticismo a experiência de Steptoe e Edwards. Uma das críticas principais é a de que o bebê de proveta pode nascer malformado, por causa de danos desconhecidos causados pelo fato de a fecundação ter ocorrido fora do útero materno.

A posição da igreja, como se sabe, é rigorosamente contrária à concepção artificial. Em 1961, quando o médico italiano Daniel Petrucci anunciou uma experiência parecida com a de Steptoe e Edwards, a rádio do Vaticano considerou-a "uma grave violação dos princípios morais". O L'Osservatore Romano, órgão oficioso do Vaticano, lembrou, por sua vez, que já em 1956 o papa Pio XII considerara "ilícitos e imorais todos os intentos de fecundação artificial humana, já que a lei natural e a lei divina exigem que, no ato da procriação, a atividade biológica não esteja separada das relações pessoais dos progenitores".

No Brasil, segundo médicos da USP e da Universidade Estadual de Campinas, não se tem notícia de nenhuma experiência parecida. É comum, isso sim, a inseminação artificial em animais ─ uma técnica que, segundo o médico filipino Jesus Bacala, os árabes utilizavam na mais remota antiguidade.

O novo Código Penal brasileiro, que entrou em vigor em julho de 1974, diz, em seu artigo 267, sobre "Fecundação por meio de inseminação artificial, que é crime "promover ou permitir em mulher casada sua fecundação por meio artificial de inseminação com sêmem que não o do marido. Pena: detenção até dois anos".

Mas a lei não é clara em relação ao consentimento do marido. E se a gravidez artificial, mesmo com sêmem de outro homem, for permitida pelo marido? "Pelo casamento", diz o advogado Vicente Fernandes Cassione, "a mulher reserva ao marido o seu corpo para procriar. A paternidade incerta ou estranha é a mais grave ofensa à própria família porque imprescindíveis são as suas conseqüências sobre tal filho assim gerado".

O Estado de São Paulo, quarta-feira, 26 de julho de 1978

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