domingo, 1 de maio de 2016

08.04.1998 - Laudos sobre morte de Zuzu indicam manipulação de dados


Laudos sobre morte de Zuzu
indicam manipulação de dados

Acidente da estilista,
em 1976, só foi
reconhecido como
intencional no mês passado

BRASÍLIA ─ No relatório sobre a morte da estilista Zuzu Angel, enviada para a 10.ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, os peritos admitem que ela fez um pequeno desvio na direção do veículo antes do acidente do qual foi vítima, na estrada Lagoa-Barra, em abril de 1976. Este detalhe, que poderia representar a intenção de Zuzu de desviar de um outro veículo, apesar de estar no relatório ─ que faz parte do Documento Sigiloso n.º 2804 do Ministério da Justiça ─, não foi levado em consideração. A polícia insistiu que a estilista estava dormindo quando ocorreu o acidente. O relatório policial sobre a morte de Zuzu também está nos arquivos secretos do Ministério da Justiça.

Em várias partes do relatório enviado ao juiz da 10.ª Vara, o delegado ─ cuja assinatura é incompreensível ─ se preocupa mais em fazer referências elogiosas a seus subordinados do que ater-se aos fatos. "Meritíssimo doutor juiz: cometeríamos uma injustiça se não ressaltássemos o trabalho primoroso dos peritos (cita os nomes) no qual, de forma inequívoca, demonstram a exuberância de seus conhecimentos técnicos e científicos, oferecendo-nos um laudo explícito e esclarecedor, do qual nos orgulhamos e nos convencemos, mais uma vez, que nossa polícia nada deve às maiores do mundo", diz o delegado.

Sobre o acidente, o delegado relaciona parte dos depoimentos de várias pessoas e só coloca no relatório trechos em que os depoentes falam que Zuzu reclamava de cansaço e da possibilidade de a estilista ter dormido no volante quando voltava para casa, pela estrada Lagoa-Barra, no dia de sua morte. Os laudos sobre o caso foram apressados pelo detetive inspetor Nelson Borges, a quem o delegado também desfia seu rosário de elogios: "O próprio detetive, demonstrando raro senso de responsabilidade e admirável comunhão de pensamento com a chefia, investigou pessoalmente o fato lamentoso."

Os laudos, porém, em nada mudaram o pensamento inicial do delegado. Eles indicavam que o carro Zuzu não tinha sido atingido por outro veículo. Mas os peritos admitiram que houve um pequeno desvio na direção no sentido do canteiro central da pista. Esse fator, porém, não teria sido causado por nenhuma colisão, diz um dos laudos: "De uma forma ou de outra, a verificação do desvio direcional inicial à esquerda, manifestado de forma suave e progressiva, nos dá o entendimento de não ter sido caracterizado por manobra volitiva, caso em que, forçosamente, implicaria em maior amplitude angular."

Zuzu: luta pela verdade sobre o filho

Mais adiante, o delegado acrescenta outros elogios aos peritos pelo reconhecimento de que a ausência de reações do motorista, "totalmente comprovada", permite afirmar que Zuzu Angel não estava em seus reflexos normais de auto-defesa. "Tal circunstância, por inusitada, não deixa ao signatários (os peritos) a oportunidade do completo esclarecimento de duas causas que pediram ser imputadas tanto a uma condição patológica quanto a uma dependência de embriaguês ou sonolência", diz o delegado. Outro laudo de pesquisa de álcool comprovou que Zuzu não estava bêbada.

Pedido para exame mental na estilista alegava "mania de perseguição"

No final do mês passado, a Comissão Especial dos Desaparecidos Políticos reconheceu que a estilista foi morta intencionalmente. Com relatos de testemunhas e simulações feitas por computador, o processo de Zuzu foi aprovado e a família terá direito a uma indenização de cerca de R$ 100 mil. Segundo a jornalista Hildegard Angel, filha de Zuzu, o dinheiro será usado para a construção de um museu que lembrará sua mãe e seu irmão, Stuart Angel.

POLÍCIA ALEGOU EMBRIAGUÊS E SONOLÊNCIA

Campanha ─ Desde a morte de seu filho, Stuart Angel Jones, ligado a movimentos de esquerda na década de 70, Zuzu denunciava o regime militar. Ela chegou a enviar uma carta ao então secretário de Estado americano Henry Kissinger e ao presidente Ernesto Geisel avisando que poderia ter o mesmo fim do filho. "Se algo vier a acontecer comigo, se eu aparecer morta, por acidente, assalto ou outro qualquer meio, terá sido obra dos mesmos assassinos de meu amado filho", escreveu Zuzu ao presidente.

Manos de uma semana depois de sua morte, segundo os relatórios do governo, uma carta foi enviada ao então ministro das Relações Exteriores, Antônio Azeredo da Silveira, por uma pessoa que ficou no anonimato. "Confiamos que as autoridades tomem as providências que um documento dessa gravidade exige", pediu o remetente. A Divisão de Segurança e Informações (DSI) do Itamaraty desdenhou as carta dizendo que ela fazia parte de "uma campanha que tentava dar caráter político ao acidente."

Maia à frente, a DSI recomendou que os órgãos de segurança fizessem um exame aprofundado no quadro clínico mental de Zuzu. "A DSI/MRE considera conveniente exame mental em Zuzu tendo em vista os indícios, em suas declarações escritas, de mania de perseguição e fixação mórbida na lembranã de seu filho", aconselhou o Itamaraty. (E.L. e M.M.)

O Estado de São Paulo, quarta-feira, 8 de abril de 1998

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