quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

17.08.1969 - O sino assassino contempla São João Del Rei ha 138 anos



O sino assassino contempla São João
Del Rei há 138 anos

O JORNAL 2º
Fundador dos Diários Associados: Assis Chateaubriand

Rio de Janeiro, domingo, 17 de agôsto de 1969

Reportagem de Jorge Audi

Esta é a história de Jerônimo. Jerônimo é pardo, tem 138 anos e pesa 4 toneladas. Em São João Dei Rei, Minas Gerais, todos o conhecem. Todos sabem do seu drama, que começou há trinta anos. Foi numa semana santa, quando a cidade estava tôda em festa. Exatamente durante a Procissão dos Passos. Nesse dia, Jerônimo matou um homem. Jerônimo é um sino. Um sino assassino.



O perfil de um assassino abençoado: quatro toneladas de azar.
Em São João Del Rei, a Semana Santa termina com a tradicional Procissão dos Passos. A cidade fica tôda em festa, e de fisionomia alegre. Das Igrejas. o som reiterado dos sinos. Cada qual procura tocar mais forte e melhor. É o também tradicional combate que há entre êles. Aquêle que mais se sobressair, terá a admiração de todos os sineiro da cidade. Jerônimo sempre ganhava. Tinha o melhor som entre todos. Era o mais valente no combate. No ano de 1939, em plena Procissão, quando a competição estava no auge. Jerônimo de repente parou. Estranhamente, emudeceu o melhor sino da cidade. Rápido, a noticia correu. Jerônimo matara um homem.

José Maria Apolinário é o atual sineiro da Igreja de São Francisco de Assis. Ele fica comovido quando fala do seu amigo Jerônimo: «Êle é um enjeitado da sorte, môço. Não posso abandoná-lo. Vou todos os dias até o telhado para visitá-lo e cuidar dêle. Era o mais triste quando precisava ser triste, e o mais alegre quando era para ser. Não é por ser meu amigo, mas Jerônino sempre foi o melhor».
QUATRO TONELADAS DE AZAR
Sinos são batizados e têm nomes, como as pessoas. Jerônimo é o sino maior da Igreja de São Francisco. Segundo contaram as testemunhas, João Pilão, o sineiro da época, estava fazendo o enorme sino redobrar. Era o combate da Procissão dos Passos e, como sempre, Jerônimo ganharia fatalmente. Mas João Pilão, às vezes se embriagava. Era dêsses tipos que conhecem todo mundo, e que todos conhecem. Nêsse dia, porém, Pilão exagerou na bebida. Entusiasmado pelo álcool e pela disputa, esqueceu-se da violência bravia do sino valente. Descuidou-se e foi esmagado contra a parede da tôrre, sob o pêso das quatro toneladas de Jerônimo. Mais tarde, a polícia comprovou que êle estava bêbado, quando morreu. Havia, no local, uma garrafa de cachaça. Mas Isto não foi atenuante para o crime de Jerônimo. Amarrado e impedido de tocar, êle esperou silencioso o dia do julgamento.
A SINA DO SINO
Depois de julgado, Jerônimo foi condenado a dez anos de prisão, no Arsenal da Guerra do Rio de Janeiro. Uma vez cumpripda a pena, foi refundido e trocaram seu nome, considerado maldito. Jerônimo passou, então, a chamar-se Santo Antônio. Na velha Igreja de São Francisco, seu toque viril foi substituído pelo de Conceição, sino suave e sem antecedentes criminais. Da volta à cidade que o condenara, Jerônimo foi colocado na tôrre esquerda da Igreja. Os primeiros contatos com São João Del Rei foram difíceis. Muito mêdo, por parte da população e dos sineiros. Aos poucos, porém, Jerônímo foi-se integrando na vida dos sinos de São Francisco de Assis. Recomeçou a chamar os fiéis para a Missa, anunciar casamentos, mortes, brincar como criança nos dias de festa, marcar as horas da cidade pequena.
POR QUEM OS SINOS DOBRAM
José Maria Apolináno, o amigo de Jerônimo e sineiro dos melhores na cidade, conhece tudo sôbre sinos. Sejam êles pequenos, meiões ou grandes. E embora os pequenos já sejam bastante pesados, os sinos grandes pesam mais de duas toneladas. Apolinárlo conhece sua linguagem, formulada através da dobres e repiques. Por exemplo, êle sabe que quando morre na cidade uma criança menor de sete anos, o sino pequeno deverá dar três repiques. Pela morte de um homem, os sinos grandes dobrarão cinco vêzes. E por urna mulher, serão quatro os dobres. Sa morre um Papa, o sino grande dobra vinte e uma vêzes. Se houver incêndio na Igreja, é preciso tocar frenèticamente o «canjiquinha queimada», que avisa a cidade da catástrofe e chama os fiéis para ajudar. E, em São João Dei Rei, existe ainda o combate. A vantagem na competição dependerá bastante do tamanho do sino e da qualidade do bronze. Mas vai depender, sobretudo, do vigor dos braços que movimentam o sino. Como o dobre é executado pelas mãos, os sinos grandes exigem três ou quatro homens para movimentá-los. E, no entanto, um fio de cabelo humano poderá rachar um sino, graças ao efeito da eletricidade contida nos cabelos humanos, colocada em contraste com a vibração dos sinos de bronze.
OUTRA VEZ, A MORTE
A trágica história de Jerônimo, porém, não termina com sua volta à cidade de onde saíra, depois de cumprir sua pena. Dois anos após ser libertado, Jerônimo estava em pleno combate, na Semana Santa, quando seu badalo se soltou. Foi cair no adro da Igreja, quase matando uma menina. Acabou-se a tolerância. Um militar, general Dorneles, antigo morador da cidade, incumbiu-se pessoalmente de punir Jerônimo pela segunda vez. Providenciou para que êle fôsse novamente refundido e perdesse também o nome. Jerônimo, agora é o sino São Francisco, o sino «invisível», calado e recolhido a uma tôrre onde ninguém entra. Jerônimo, sino dos maiores, que recebeu êste nome em 1830, quando nasceu na fundição da Rêde Mineira de Viação. Êle é um sino condenado. Há anos vive calado e proscrito, na tôrre esquerda da Igreja de São Francisco de Assis. Jerônimo, o amigo de Apolinário. Um sino. Um assassino.

O JORNAL, Rio de Janeiro, domingo, 17 de agosto de 1969

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