terça-feira, 14 de junho de 2016

28.11.1985 ─ O professor que transformou a História

Fernand Braudel  * 1902 + 1985


O professor que transformou a História

A Academia Francesa por pouco não teve tempo de redimir-se: só no ano passado concedeu a Fernand Braudel a honra de pertencer a seus quadros. Ele era simplesmente o maior historiador francês. Muito mais do que isso, o criador de uma nova visão da História, reconhecido a partir da publicação, em 1949, de sua obra monumental O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de Felipe II.

Era a primeira vez que um historiador praticamente ignorava a tradição da ordem cronológica. A História imóvel era abandonada. Surgia uma História que se movimenta em planos superpostos, em contínua comunicação, incorporando a seus estudos os recursos das outras ciências sociais e buscando, no movimento da vida, o que se altera com rapidez e o que muda com lentidão.

O livro foi saudado imediatamente como uma obra-prima de produção historiográfica. O historiador americano John Elliot considerou-o um dos acontecimentos editoriais mais significativos do século. Arnold Toynbee escreveu que Braudel, "com julgamentos sempre precisos e reflexões magistrais, ilumina todos os pontos em que opera, sendo admiravelmente amplo e compreensivo". Lucien Fevbre, que foi mestre de Braudel, definiu o trabalho como "uma obra de arte, uma revolução na maneira de conceber a História".

E Braudel não queria ser historiador: queria ser médico. Era a vocação cultivada desde a infância, na cidadezinha francesa onde nasceu em 24 de agosto de 1902, Lumerville-en-Ornois. O pai não o queria médico e "a minha ausência de ambições conduziu-me à História" ─ contaria ele muito mais tarde. Logo ao formar-se, pela Escola Normal Superior, foi nomeado professor na Argélia, onde lecionou de 1923 a 1932. Foi ali que descobriu o Mediterrâneo e suas civilizações, temas sobre os quais iria escrever com tanto brilho mas só muito depois e em condições de extremas dificuldades: num campo de concentração, em Lubeck, prisioneiro durante a Segunda Guerra Mundial, trabalhou sem sequer dispor de fichas para consultas.

Concluído o livro, ele verificava que se tornara o aplicador e o promotor da Nova História, sonho de seus professores Marc Bloch e Lucien Febvre, os quais ensinavam que os eventos discretos deveriam ter, para o historiador, a mesma importância das guerras e revoluções. Bloch e Febvre, no entanto, apesar de sua visão pioneira, não conseguiram os meios de implantar essa nova noção da História. Braudel conseguiu dar o salto.

No pós-guerra, em 1946, ele assumiu a direção da influente revista Annales. Mais tarde tornou-se professor do Colégio de França e da Escola de Altos Estudos de Ciências Sociais. Três décadas depois da publicação de seu livro revolucionário, produziria, em 1979, outra obra fundamental: as 1 mil 800 páginas de Civilização Material, Economia e Capitalismo do Século XV ao Século XVIII. Com ela, causou um impacto semelhante ao obtido pelo trabalho anterior.

Mas ele se considerava apenas relativamente bem-sucedido: "Se me perguntam se tive êxito em minha profissão ─ disse no ano passado ─, respondo que sim e não. Os homens e as obras passam. Em todo caso, foi-me dado assistir a um espetáculo visto por poucos: todas as ciências do homem vistas de perto, as realidades da Rússia Soviética, das Américas, da Índia, da China. Isso muito me ajudou. Creio ter tido sucesso em meus trabalhos de investigação. Pelo menos, eles me satisfizeram."

Fernand Braudel esteve duas vezes no Brasil. Em 1935, integrou, juntamente com Claude Lévy-Strauss, a missão francesa importada pela Universidade de São Paulo. Ensinou aqui, durante dois anos, História da Civilização. Generosamente, chegou a dizer que "foi no Brasil que me converti na pessoa que sou hoje". Na verdade, o que aqui fez ─ além de ministrar suas aulas e escrever um livro sobre História do Brasil que não quis publicar ─ foi concluir suas obra sobre o Mediterrâneo: "Os estudantes trabalhavam pouco e os professores também. Havia tantas festas. Um dia era a descoberta da América, outro era dia de soltar balão. E aí a universidade fechava. Não tinha aula e eu aproveitava para escrever a tese."

Voltou em 1949, para mais um ano de permanência. Mas não quis, no ano passado, vir para as comemorações do cinquentenário da Universidade de São Paulo: "Tenho medo de ir, tomar muito uísque, ir dormir às duas da manhã. Não quero cair na tentação."

Jornal do Brasil, quinta-feira, 28 de novembro de 1985

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