terça-feira, 15 de março de 2016

05.03.1996 - Guarulhos enterra seus cinco meninos

Terça-feira, 5 de março de 1996                               CIDADES                                O ESTADO DE SÃO PAULO - C3
TRAGÉDIA
Itamar Miranda/AE
Fãs passam perto dos caixões, do outro lado do cordão de isolamento: velavam ao mesmo tempo celebridades e garotos de sua turma; gente de suas lembranças nas ruas numeradas de Guarulhos


Guarulhos enterra seus cinco meninos


Proximidade entre jovens e periferia e misto de celebridades e amigos de turma marcou o velório


ELIO GASPARI

Os amigos de Guarulhos e desta vida despediram-se dos Mamonas Assassinas numa noite de lua nova, deixando-lhes mensagens escritas no pano das camisetas da banda que ficaram estendidas sobre os caixões cobertos com as bandeiras do Brasil e da cidade.

Desirée para Sérgio:

"Você é 10. Que todos vocês estejam em bons lugares. Te adoro, cara. Você é animal".

Isis para Samuel:

"Me disseram que o céu estava triste, precisando de alegria, Chamou vocês. Acho que é verdade."

Bia para Dinho:

"Como Deus quiseis assim. Te adoro. Ainda te vejo".

Lole: "Valeu, cara. O que você fez por todos nós foi D+. Xô pequetinha. Não dá para esquecer."

Dea para Julio:

"Os roqueiros de Guarulhos lhes manda um abração e tá todo mundo querendo ir com vocês!!!! Espera a gente, tá."

Desirée, Isis, Bia, Lole e Dea são jovens da periferia de São Paulo, que cresceram em conjuntos habitacionais projetados para viver sem alma. Alguns se chamam Jardim, descampados onde há capim, mas não há gramado. Outros se chamam Parque, mas nada há neles que pressuponha divertimento. É uma garotada que vive em ruas numeradas (a de Dinho era a 19, mas hoje se chama Aparecida Goiana, a de Samuel e Sérgio, a 29, mandou uma coroa de flores).

Sempre em casa ─ Para eles, como para milhares de pessoas que passaram pelo velório dos Mamonas, aqueles meninos nunca saíram de Guarulhos. Velavam ao mesmo tempo celebridades e garotos de sua turma, gente de suas lembranças. Estavam do outro lado do cordão de isolamento, tocando os caixões, mas isso não fazia diferença.

"O Dinho era uma alegria só. Como eu o conheci? Na danceteria Cali, na Serra da Cantareira. Eu era garçonete." Katia Regina Lippi tem 23 anos, hoje é cabeleireira em Guarulhos. Ela e sua amiga Cristina Araújo, 17 anos, estudante, passaram a madrugada na quadra de esportes onde se velavam os garotos. Cristina mantinha longos períodos de silêncio, em lágrimas, tocando os caixões de Sérgio, Samuca e Júlio. Ela conheceu Júlio no Recreativo, uma casa dançante de samba. Faz séculos. Os Mamonas ainda não existiam. Chamavam-se Utopia, não tinham gravado e animavam festas em colégios ou no conjunto Parque Cecap, com seus edifícios de três andares. Isso foi há pouco mais de um ano.

Carros do Corpo de Bombeiros, PMs fantasiados de soldadinhos de chumbo, prefeito de jaquetão, primeira-dama de longo azul, pulseira, brincos, colar e cabelos dourados são personagens de um mundo distante. Havia no velório dos Mamonas uma proximidade estranha. Eram o maior fenômeno musical do Brasil, mas viviam em Guarulhos, como se ainda não tivessem desligado da turma da infância. A fila de despedida não parou um só minuto. Mesmo às cinco da manhã, hora do lobo de qualquer velório, caminhava lentamente diante dos caixões. Pelas ruas do fim de noite de domingo, jovens calados deitavam-se nas calçadas de alguns pontos de ônibus da Avenida Tiradentes, misturando-se aos primeiros operários da jornada de segunda-feira. (A essa hora no velório de Juscelino Kubitschek e de seu motorista contavam-se menos de 30 pessoas. No do no marechal Costa e Silva, quatro, com um senador dormindo.)

Ninguém cantou ─ Algumas rádios noticiavam que a multidão em frente ao ginásio onde estavam os Mamonas cantava seus sucessos. Falso. Ninguém cantou coisa alguma, em Vila Flórida naquela noite. "Questão de respeito", informava Elias Souza Silva, 19 anos, vendedor de frutas na barraca do Magu, na feira. A única música cantada naquela quadra foi Tantos como Areia, do hinário da Assembléia de Deus. Com uma folha de mamona na cabeça e uma lata de cerveja na mão, Elisa ficou do lado de fora: "Nunca mais sarei, nem vou sarar." Era amigo de Samuel e de Alberto Hinoto, o japonês.

Pessoas saídas dos mais diferentes lugares tinham algum vínculo com aqueles garotos. Antônio dos Santos, 54 anos, correu a rua com quatro colegas de trabalho carregando maços de folhas de mamona. Quanto é? Nada. Pode levar. Enchera um carro com três mil folhas e em pouco mais de meia hora já distribuíra duas mil. Tem 20 anos de jardinagem e uma lembrança: "O Fusquinha que eu tenho comprei da namorada do Japonês. Nunca mais vendo. Virou relíquia".

Por perto do percurso do jardineiro, horas antes, Walter Teles, um mecânico de 48 anos, enrolador de transformadores da AABB, passou um bom tempo sentado na calçada, ao lado da mulher. Foi se despedir de Dinho, a quem nunca ouviu cantar, mas cujo pai, Hildebrando, conhece há 15 anos. O fato de ter uma Brasília amarela não tem a menor importância para Walter Teles. Comprou a sua há séculos, quando os Mamonas nem Utopia eram, há mais de dois anos.

O sonho do carro ─ As Brasílias de Guarulhos são causa e não lembrança da irreverência dos Mamonas. Eles viveram num lugar onde de fato se sonha com um carro, e uma Brasília (amarela, BFL-4467) está mais do que bom para o pedreiro Enoch Ferreira Souto, 48 anos, que subiu a ladeira para o velório com duas preocupações: acompanhar o neto Michael, de 3 anos, e avisar um colega que estava numa obra próxima de que o dia era feriado.

A de Waldery Negrão (BGL-1227) é cor de icterícia e os papéis dizem que é verde. Borracheiro, estacionou pouco antes das sete da manhã. Com um boné de feltro verde e uma camisa estampada, entrou na fila, percorreu os 30 segundos de companhia com os Mamonas a que tinha direito, desceu a rua, entrou no carro e foi-se embora trabalhar. Não fez social algum. Conhecia os garotos? "Direito, só o japonês. Os outros, de vista." Há poucos meses, quando eles cantaram naquele mesmo ginásio, não conseguiu entrar. Alexandre Sérgio Firmino, um negro imenso, todo vestido de preto, fez o mesmo percurso antes de abrir sua charutaria, onde vende um cachimbo inglês por semana, a "80 dólares". Alexandre morou perto de Dinho. Tem dele a mesma lembrança que o Brasil. "Era muito engraçado, fazia piada de tudo, mas não derrubava ninguém, ao contrário, se tinha alguém caído, podia contar que ele estendia a mão." É das poucas pessoas que se lembra que o baixista do Utopia era o Marcão, que não sabe por onde anda.

Esse ar de familiaridade do velório preencheu, com sobra, as ausências espetaculares. A qualquer hora da noite havia alguém capaz de assegurar que Xuxa tinha chegado ou estava chegando. Quando os caixões estavam no alto dos carros do Corpo de Bombeiros várias louras foram saudadas pela multidão, mas Xuxa não veio. Veio Maguila, de Mercedes. Faltou também a carpa oficial que o ano eleitoral de 1994 atraiu para o velório de Ayrton Senna. O de Guarulhos não ganhou sequer ministro da Cultura (Francisco Weffort, quando candidato a deputado, foi caçar votos em Guarulhos, mas isso é passado, PT).

Os Mamonas eram inconvenientes? E daí? Durante seu breve reinado em Petrópolis, o presidente Fernando Henrique Cardoso convidou dois bispos para assistir a uma encenação de Carmina Burana, composição orgiástica alemã que, na montagem serrana, teve direito a mulher pelada. Bacanal clássica, tudo bem. "Suruba" em letras de música de garotos Guarulhos, inaceitável.

62 coroas ─ Guarulhos se bastou chorando a morte dos artistas do lugar. Havia 62 coroas. Numa espécie de lugar de honra, a de Gugu Liberato. Depois, o retrato do pedaço: "Amigos do Reggae Night", "Mecânica Panda", "Empresa Meteoro" e as "Saudades do Lua Nua Bar", onde eles cantavam antes a Utopia. Os caixões eram sete, mas a funerária não teve crucifixos. Vieram só cinco.

Foram 14 horas de fila. Uma fila de Jeans, agasalhos e tênis, jeans agasalhos e tênis. Uns poucos meninos jogaram flores e folhas de mamonas em direção aos caixões. Eram seis famílias (cinco Mamonas, dois deles irmãos, um técnico de palco e um agente de segurança). Nenhum terno, nenhuma solenidade. Francisco José de Oliveira, um operário aposentado depois de 35 anos de serviço numa malharia, foi enterrar dois filhos de jeans. Os caixões de Sérgio e Samuel estavam lado a lado. Ele passou quase toda a noite com uma máscara impassível. Não falava e não chorava, até que se abraçou num dos amigos dos filhos e descansou a cabeça no seu ombro por alguns minutos.

Mãos no bolso ─ O pai de Júlio, Juliano Sales Barbosa, 56 anos, aposentado depois de 20 anos de serviço como eletricista de manutenção da Cummins, mantinha uma altiva serenidade na voz, mesmo quando contava que ainda tivera alguma esperança na noite de sábado, quando lhe disseram que o avião caíra. Só os olhos injetados mostravam o que lhe acontecera. Às 5h30, quando foi para casa descansar, caminhou pela quadra com as mãos no bolso, parou por um instante em frente ao caixão e seguiu seu caminho.

Ontem, o gigantesco bloco de alumínio e concreto do Ginásio Poliesportivo Paschoal Thomeo (ex-prefeito, deputado estadual, paletó cinza imenso) teve o seu dia de fama. É uma construção azul e amarela, talvez barata no custo, certamente faraônica da concepção. Nele o nome do político benemerente foi escrito com letras maiores que um automóvel. Na vizinhança, contudo, está o verdadeiro mundo dos Mamonas, aquele que os conduziu à irreverência que lhes deu o sucesso e alguma má-vontade.

Logo abaixo do estádio, perto da esquina das Ruas Juquitiba e Jequitinhonha, a Escola de Cabelereiros Shirley anuncia que atende de graça aos menores de 21 anos e cobra 3 reais para mulheres, dois para homens (em Brasília, barbeiro de ministro atende em casa e pede 10). Cinco passos adiante o grande muro de blocos cinzentos de concreto que protege o terreno do ginásio está esburacado, semi-destruído. Lembra outro muro antes que o derrubassem completamente. Atacaram-no há poucos meses, quando uma chuva encheu o córrego-esgoto que desce pela pequena favela próxima. Os moradores acharam que o muro era o culpado pelo represamento da água.

"Aqui é diferente" ─ Para quem vive de grandes funerais, os Mamonas fizeram sucesso até o fim. Valdir Pinheiro mora em Osasco, tem uma Kombi na qual carrega sua carrocinha de cachorros-quentes. Esteve em funerais memoráveis. Tancredo Neves ("o maior de todos, nunca vendi tanto, mas também foram vários dias"), Elis Regina e Ayrton Senna ("havia muita solidariedade, vendi 250, mas lá eu servia também calabresa"). Esperava vender 150 e gostava dos Mamonas.

Como de hábito, acompanhava o espetáculo pela televisão, uma CCE portátil. Discutia com os apresentadores e aborreceu-se quando ouviu que estava chovendo. Por que o senhor não vai lá dentro? "Porque eu não gosto dessas coisas." E por que o senhor está vendo pela televisão? "Porque aqui é diferente, é muito clima." Lá dentro, velavam-se os cinco rapazes do Mamonas Assassinas, que morreram quando eram amados nos dois climas do mundo de tantos Valdir.

O Estado de São Paulo, terça-feira, 5 de março de 1996

Nenhum comentário:

Postar um comentário