quinta-feira, 17 de março de 2016

19.09.1996 - Tragédia sobre trilhos em Japeri

12                                                                        O GLOBO                           Quinta-feira, 19 de setembro de 1996
 RIO 
DESASTRE: Cargueiro que transportava bobinas de cabos de aço perde freio e bate a 100 km/h em trem de passageiros


Tragédia sobre trilhos em Japeri


Quinze pessoas morreram e 60 ficaram feridas no acidente que fez a cidade parar


Sem freio, o trem cargueiro vinha a aproximadamente cem quilômetros por hora. Logo à frente, na mesma linha um trem de passageiros estava parado num sinal da passagem de nível. Os dois maquinistas do cargueiro. desesperados, apitavam sem parar, tentando chamar a atenção dos passageiros do outro trem para que eles pulassem. O som ensurdecedor do apito se juntava aos gritos de alerta dos moradores, enquanto a distancia entre os trens ficava cada vez mais Curta. Cinqüenta metros antes da batida os dois maquinistas do cargueiro se abraçaram para esperar o que parecia inevitável: a morte.

Essa é parte da tragédia que parou ontem de manhã a pequena cidade de Japeri, onde um acidente ferroviário matou 15 pessoas e feriu cerca de 60. O cargueiro de prefixo 5032, procedente de Juiz de Fora (Minas Gerais), colidiu na traseira do trem de passageiros de prefixo 3160, conhecido como "Barrinha", que saía de Barra do Piraí com destino à estação de Japeri. Pessoas ensangüentadas corriam pelas ruas, corpos mutilados ficaram atirados no leito da ferrovia e moradores entraram num vaivém alucinante tentando socorrer as vitimas. Entre os que se feriram gravemente estavam os dois maquinistas do cargueiro.

O desastre com os dois trens da Rede Ferroviária Federal ocorreu às 8h16m. O cargueiro de 18 vagões saiu da estação de Dias Tavares, em Juiz de Fora, com um carregamento de bobinas de cabos de aço da Siderúrgica Belgo-Mineira com destino ao Rio de Janeiro. O "Barrinha" levava para Japeri cerca de 90 moradores de Barra do Piraí e cidades próximas, que fariam baldeação para o Rio naquele município. Como havia uma composição da Flumitrens parada em Japeri — de onde viria para a Central do Brasil — o "Barrinha" parou no sinal da passagem de nível, a 700 metros de distância da estação, logo depois de uma curva.

Tudo indica que o cargueiro, que pesava aproximadamente duas mil toneladas, tenha perdido o freio ao descer a Serra das Araras, a cerca de 30 quilômetros do local do acidente. Às 8h12m, o cargueiro entrou em contato com o controle de tráfego de Barra do Piraí, avisando que estava sem freio e em velocidade excessiva.

Um minuto depois, por telefone, o controlador de tráfego do posto 64, a cerca de quatro quilômetros da passagem de nível deu o mesmo aviso ao auxiliar de controle de tráfego da estação de Japeri, Francisco José Ferreira. O funcionário do posto 64 viu quando o cargueiro passou em alta velocidade, avançando um sinal que estava vermelho. A estação de Japeri foi avisada três minutos antes da colisão.

Dois passageiros conseguiram
se salvar pulando do vagão

Alguns moradores perceberam que ia acontecer uma tragédia e começaram a gritar para que os passageiros pulassem. Dois rapazes que estavam numa das portas do trem olharam para trás, viram o cargueiro em alta velocidade e se atiraram de qualquer maneira no leito da ferrovia. conseguindo escapar ilesos, embora em estado de choque. Outros não tiveram a mesma sorte: tentaram salvar a vida pulando pelo outro lado do trem — o esquerdo — e acabaram encontrando a morte debaixo dos vagões, quando a composição descarrilou e tombou depois da colisão.

A maioria dos passageiros, no entanto, sequer teve tempo de se mexer antes da tragédia. O cargueiro colheu o trem por trás, os dois embicaram para cima e a composição de passageiros tombou. Os 18 vagões do cargueiro descarrilaram e avançaram, envolvendo o outro trem, num choque que produziu um estrondo ensurdecedor.

Uma mulher grávida de sete ou oito meses foi esmagada sob um dos vagões e o feto expelido para os trilhos. Outras pessoas tiveram membros amputados. Vísceras misturavam-se às pedras do leito da ferrovia. Bolsas, sapatos, pedaços de roupas e documentos espalhados no local compunham uma cena dantesca em Japeri.

Um dos primeiros a chegar ao local foi o enfermeiro Élio Rodrigues Fortin, de 38 anos.

— Parecia o som de um trovão muito forte em dia de tempestade violenta. Os moradores correram para a passagem de nível. Eu e outras pessoas começamos a tentar socorrer os feridos. Muitas vitimas, ensangüentadas, gritando enlouquecidamente, saiam do trem e corriam pelas ruas. Em poucos minutos as ambulâncias do Hospital Municipal de Japeri começaram a chegar. Depois que ajudamos a socorrer os feridos, só nos restou recolher os corpos e as vísceras — contou o enfermeiro.

Os feridos foram levados para o Hospital Municipal de Japeri e para a Casa de Saúde Nosso Senhora da Conceição, a 200 metros do local do acidente. Dali, as vítimas em estado mais grave foram transferidas para o Hospital da Posse, em Nova Iguaçu. Três feridos morreram na ambulância, a caminho da Posse. Outra mulher grávida, Rosilda Penedo, de 29 anos (no quarto més de gestação), morreu na Casa de Saúde Nossa Senhora da Conceição. Um homem, que ainda não foi Identificado, morreu ao chegar ao Hospital da Posse. No local do desastre, dez pessoas morreram. Entre os mortos, estava o agente de trem Ilmar Figueiredo, de 44 anos, que viajava num dos vagões de passageiros.

Na lista de feridos estão os maquinistas do cargueiro, registrados na Rede Ferroviária Federal apenas como P.A. de Carvalho e J.S. Silva. Os maquinistas do trem de passageiros, Daniel Rodrigues e Cláudio Guimarães, também se feriram.

O Corpo de Bombeiros foi acionado e em poucos minutos chegaram carros dos quartéis de Nova Iguaçu e Paracambi. O quartel central, no Rio, mandou logo reforço. No total, foram 50 bombeiros trabalhando no resgate das vítimas e chefiados pelo comandante do quartel de Nova Iguaçu, coronel Pascoal.

A cidade parou. De todas as ruas saía gente para ver o desastre. A multidão ocupou o leito da ferrovia, se acotovelando para ver o trabalho dos bombeiros e dos voluntários. Policiais do 24º BPM (Queimados) tiveram de isolar com uma corda a entrada da passagem de nível, para facilitar o transito de quem estava empenhado no resgate das vitimas. Um helicóptero da Coordenadoria Geral de Operações Aéreas (CGoa) sobrevoou o local.

A locomotiva que saiu de Dias Tavares puxando os vagões de carga apresentou problemas e teve que ser trocada já no Rio, na estação de Barra do Piraí. Segundo o presidente da Rede Ferroviária Federal, Isaac Popoutchi, todo trem que entra no Rio é vistoriado em Barra do Piraí exatamente por ser a última estação antes da descida da Serra das Araras. A locomotiva que causou a tragédia, de acordo com ele, também passou por uma inspeção e teve testados seus freios. Além disso, informou, foram examinados a posição das rodas e outros equipamentos.

— Tomamos todas as precauções para a descida da serra — afirmou. — Um acidente dessas proporções não é normal. Há 20 anos não se registrava um desastre assim.

Vistoria de trem em Barra do Piraí
não foi feita dentro das normas

Uma comissão interna foi formada pela Rede Ferroviária para, em sete dias, informar as causas do acidente. Já se sabe, no entanto, que a vistoria feita em Barra do Piraí não seguiu as normas. Segundo funcionários da Rede Ferroviária, são necessários quatro dias para uma vistoria completa, que inclui a verificação de 71 itens. A inspeção no trem, no entanto, não levou muito mais que dez minutos.

Um aviso na estação de Barra do Piraí, assinado pelo engenheiro Cristiano Matos, pedia a liberação rápida da composição. Apenas dois itens foram examinados: a carga e justamente os freios, que acabaram falhando.

O gerente de Transportes da Rede Ferroviária Federal, engenheiro Mário Sidrim, esteve no local da colisão. Ele também disse que todo cargueiro passa por vistoria ao entrar no Rio. Sidrim confirmou que a estação de Japeri foi avisada sobre o cargueiro sem freto trinta minutos antes do acidente, mas não soube dizer se ainda daria tempo para alertar os dois maquinistas do trem de passageiros.

— Vamos ouvir as fitas com a gravação das conversas do centro de controle para saber exatamente o que aconteceu para acontecer a colisão — disse o engenheiro.

Mário Sidrim afirmou que a locomotiva tinha condições de trafegar com segurança:

— É difícil precisar as causas de um acidente dessas proporções. Ainda mais que o cargueiro passou pela vistoria e o freio estava em perfeitas condições — garantiu ele.

Pelo telefone,
o anúncio
da tragédia

O telefone tocou às 8h13m na sala de controle de tráfego da estação de Japeri. Atônito, o funcionário da Rede Ferroviária Federal de plantão no Posto 64, a quatro quilômetros de distância, dava a informação que três minutos depois se transformaria na tragédia.

— O cargueiro está sem freio, está sem freio! Passou aqui a mais de cem por hora, sem respeitar o sinal. Vai bater no "Barrinha", vai bater! — gritava o funcionário para o colega de Japeri Francisco José Ferreira, de 47 anos. 

Francisco correu os olhos pelo painel de controle que informa o tráfego da ferrovia e viu a aceleração do cargueiro.

— Não dava para fazer nada. Nem para avisar os maquinistas do trem de passageiros. Foram três minutos de pavor, de angústia, sabendo o que estava para acontecer e sem poder lazer nada para evitar. De repente, o painel ficou todo iluminado. Era o choque dos trens. Eu vi o desastre pelo painel. A tragédia chegou a nós através de luzes num simples painel — repetia Francisco, emocionado e abatido, enquanto observava os bombeiros resgatando corpos. 

Francisco ficou com sentimento de culpa por não ter podido avisar os colegas e os passageiros:

— Eu queria tanto poder ajudá-los. Se houvesse tempo de correr pelos trilhos, mandar todo mundo sair do trem... Mas três minutos era muito pouco para correr 700 metros. Já estou meio velho, meio cansado. Restou-me esperar que a tragédia se consumasse ou que a mão de Deus impedisse a fatalidade. Só um milagre os salvaria.

O Globo, quinta-feira, 19 de setembro de 1996

Nenhum comentário:

Postar um comentário