terça-feira, 12 de abril de 2016

02.02.1983 - DOSSIÊ BAUMGARTEN

14 ◙ 1º caderno ◙ quarta-feira, 2/2/ 83           DOSSIÊ BAUMGARTEN                                  JORNAL DO BRASIL

Na carta, a promessa de não comprometer o SNI

Na carta ao General Medeiros, escrita duas semanas antes do dossiê, Alexandre von Baumgarten, ao expor a situação da revista O Cruzeiro e a sua, pessoal, garante: "Jamais procurei me munir de qualquer tipo de documento ou papel que vinculasse o SNI ao acordo que realizou comigo, mesmo porque considero que a palavra de qualquer oficial de nossas Forças Armadas tem mais valor do que qualquer coisa escrita".

No final explica: "Senhor Ministro: considero, sob todos os aspectos, lastimável ter que me dirigir a V. Excia nos termos em que o fiz. Creia, no entanto, que apenas o fiz após muita reflexão e por ter sido colocado em uma situação que não me deixou opções. Fui animado a fazer isso, confiando no seu alto espírito de justiça e na correção de propósitos que acredito ter animado a sua vida". E finaliza: "Minha esperança ao escrever esta carta é evitar o pior".

A carta

Eis a íntegra da carta:

Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 1981

Exmo. Sr.
General Octavio de Aguiar Medeiros
DD Ministro Chefe do Serviço Nacional de Informações
Brasília ─ DF

Senhor Ministro,

No correr do mes de julho de 1979 o signatario desta fez um acordo com o general Newton de Oliveira e Cruz no sentido de editar a revista O Cruzeiro. Segundo esse acordo a Agência Central do SNI, em uma primeira fase, se incumbiria de conseguir recursos da ordem de oitenta milhões em publicidade ou em espécie. Em uma etapa posterior trinta milhões de cruzeiros, em torno dos quais aliás foram mantidos entendimentos com o ex-ministro Said Farhat por representantes do chefe da AC do SNI que se fizeram acompanhar pelo signatario desta, isso em agosto de 1980. Com esses recursos a revista deveria se manter em circulação por um ano e publicar as matérias solicitadas pelo SNI.

O SNI não manteve o compromisso assumido, enquanto que esta Editora vem fazendo O Cruzeiro circular a 17 meses, publicando em todos os números matérias de interesse do Serviço Nacional de Informações. Em face disso o passivo da Editora anda hoje por volta da casa dos cem milhões de cruzeiros.

No correr do mês de novembro de 1980, por orientação de representantes do general Newton de Oliveira e Cruz, esta Editora fez uma carta a CAPEMI, com data do dia 12, endereçada ao general Adhemar Messias de Aragão propondo a entrega da firma, excluídos os títulos 7 Dias e A Cigarra, a aquela empresa pelo passivo. Uma outra carta da Editora, com data de 17 do mesmo mês, autorizava a CAPEMI a promover uma auditoria contábil, econômica e financeira dentro da Editora. Por solicitação do general Adhemar Messias de Aragão a Editora abriu mão do direito que tinha de indicar um auditor próprio para acompanhar esse trabalho. Ainda no correr da auditoria, por solicitação do presidente da CAPEMI, foi passada uma procuração de amplos poderes para dois funcionários da CAPEMI, lavrada no 9º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, livro 2242, folhas 83. Após a lavratura das procurações a CAPEMI, independentemente de um contrato anterior de publicidade da ordem de 12 milhões de cruzeiros líquidos, assumiu compromissos da ordem de 7 milhões de cruzeiros para a compra de papel e impressão dos números 27 e 28 da revista.

Após a conclusão dos trabalhos de auditoria, cujo teor é ainda desconhecido dos diretores desta Editora, começaram a circular informações em diversos setores de que o negócio não mais seria feito por várias razões entre as quais, por improbidade administrativa dos diretores da empresa e notadamente do signatario desta.

Face a isso é que considerei importante escrever esta carta a V. Excia, e colocar alguns problemas como eles realmente ocorreram: Todos os entendimentos com o SNI sempre foram conduzidos de maneira leal, franca e muito correta, não tendo jamais ocorrido qualquer dúvida quanto a honestidade de propositos dos seus subordinados.

Jamais procurei me munir de qualquer tipo de documento ou papel que vinculasse o SNI ao acordo que realizou comigo, mesmo porque considero que a palavra de qualquer oficial das nossas Forças Armadas tem mais valor do que qualquer coisa escrita.

Conduzir sempre tora a coisa com a melhor boa fé, estando por isso, agora, eu e meus associados, Romeu Onaga e Cleo Garrafa, com os seus nomes e patrimonios irremediavelmente comprometidos com o empreendimento.

É forçoso reconhecer irregularidades administrativas na sucursal do Rio de Janeiro. Providencias, no entanto, não foram adotadas face a implicações que envolviam a geração de recursos para o capital de giro da empresa, conforme foi muito bem explicado aos representantes do SNI, tendo inclusive o Sr. Francisco Salles de Oliveira Júnior, contratado em nível de diretor pela Editora por indicação do SNI, tomado conhecimento de toda a documentação e do problema na sua mais ampla expressão. Todos à época, abril de 1980, concordam que as providencias deveriam aguardar que a empresa chegasse a uma situação economica equilibrada.

─ É também certo que durante sua gestão o Sr. Francisco Salles de Oliveira Junior sempre manteve o SNI informado da situação real da Editora através de documentos e ligações telefônicas quase que diárias.

Ainda que tivesse todo o direito jamais me beneficiei pessoalmente com qualquer coisa decorrente da circulação da revista. Muito pelo contrário. Não apenas comprometi todo o meu patrimonio e bom nome, como também investi todos os meus recursos no empreendimento. Não aceito e repudio, por tanto, qualquer tipo de insinuação sobre a minha honradez e correção de propositos. Fiz a revista porque acreditei estar prestando um serviço a Nação e sempre dei cobertura ao presidente João Figueiredo porque acredito na sua correção de propositos. Os 28 numeros da revista editados até agora comprovam isso muito bem.

Isto posto, senhor Ministro, é importante ressaltar, por outro lado, que as constantes protelações para a solução do problema vem inibindo a direção da Editora de tomar qualquer ação administrativa mais drástica. Para que V. Excia tenha uma ideia, é bom que saiba, que nesta data há pelo menos tres pedidos de falencia contra a Editora já ajuizados e cuja decretação, a cada dia que passa, fica cada vez mais difícil de adiar ou de sustar e o SNI e a CAPEMI estão informados disso.

A par disso tudo não há recursos para editar o nº 29 da revista. A não ocorrer uma injeção mínima de meios. O Cruzeiro não sairá mais e é certo que a Editora tera sua falência decretada, seus diretores desmoralizados e seus patrimônios liquidados.

Senhor Ministro considero, sob todos os aspectos, lastimavel ter que me dirigir a V. Excia nos termos em que fiz. Creia, no entanto, que apenas o fiz após muita reflexão e por ter sido colocado em uma situação que não me deixou opções. Fui animado a fazer isso confiando no seu alto espírito de justiça e na correção de propositos que acredito têm animado a sua vida. Minha esperança ao escrever esta certa é evitar o pior.

Agradecendo a atenção de V. Excia, fico na expectativa de um pronunciamento.

Atenciosamente,

Alexandre von Baumgarten

copias para: Gal. Newton de Oliveira e Cruz Gal. Adhemar Messias de Aragão Sr. Romeu Onaga Sr. Cleo Garrafa

Baumgarten teve o cuidado de anexar aos documentos todos os recibos dos Correios
Arquivo ─ 24.2.82
No carnaval passado, Medeiros ocupou um camarote para ver o desfile na Sapucaí

Autoridades questionam versões do desaparecimento

Carlos Rangel

Se há dúvida que é de Alexandre von Baumgarten o corpo que apareceu na Av Sernambetiba, perto do Restaurante Âncora, na Barra da Tijuca ─ a despeito do auto de exame cadavérico ─, a partir de ontem as autoridades encarregadas de investigar o assunto, desde a Polícia Naval até o IML questionavam todas as hipóteses de afogamento, assassinato e até o paradeiro da traineira Mirimi.

Na delegacia de polícia encarregada do inquérito sobre o que se convencionou chamar "o desaparecimento do jornalista", fazia-se até um exercício de imaginação, levantando-se hipóteses razoáveis de que não tivesse havido qualquer pescaria, e até uma simulação de sequestro por parte de Baumgarten. O difícil era explicar o paradeiro da mulher, Jeannete, e do barqueiro, Manuel Augusto Valente Pires.

Banco de dados

Na Capitania dos Portos, onde um oficial afastou a hipótese de assaltantes do mar, como acontece na zona portuária de Santos, lembrava-se o regime de ventos e dos mares da entrada da Baía de Guanabara, e um outro funcionário remetia o repórter para a Diretoria de Hidrografia e Navegação. Lá existe um banco de dados que dá até a natureza da corrente do mar na madrugada do dia 13 de outubro, uma quarta-feira, quando Baumgarten foi visto pela última vez, antes de se fazer ao mar.

O fato de que a Mirimi tenha desaparecido em definitivo, com as suas 11 bóias, a despeito da busca numa área superior a 60 milhas, há não surpreende ninguém. Um funcionário da Capitania, com experiência até de entrar na barra dentro de um submarino, disse que a traineira (com sete metros, de fibra de vidro) poderia ter ficado no fundo para sempre, na variada costa que vai desde a Barra até a ponta da restinga da Marambaia.

─ Mas quem garante que tenha sido esse o trajeto da traineira? ─ perguntou. E, de fato, não há qualquer pedido de socorro nem mesmo no serviço de rádio da Sudepe, que funciona na Praça Quinze, de onde a Mirimi teria saído, com Baumgarten e a mulher, depois que deixou o ancoradouro do Caju, lugar onde o pescador Manuel Augusto Valente Pires, o Português, guardava a embarcação.

Há indicações vagas de que a Mirimi, segundo um professor que dá aulas para mergulhadores na Urca, teria encostado nas imediações do Cassino na manhã em que desapareceu. Mas ele evitou fazer outras especulações quando se aproximou um funcionário da Capitania dos Portos.

Na Praça Quinze ─ quase quatro meses depois que a traineira sumiu ─ apenas dois homens que trabalham no mercado de peixes lembram de Manuel, o Português, que vinha apanhar passageiros para pescarias em determinados dias (todas as quartas-feiras, sempre ao amanhecer). Ele encostava num quadrado reservado a frágeis embarcações, perto de onde partem os aerobarcos para Niterói. Era uma entre as dezenas de traineiras que vão parar até em Macaé ou Cabo Frio, em um roteiro bem diferente daquele que se supõe ─ as ilhas Cagarras, o lugar favorito de Baumgarten.

O que se dizia ser intrigante, quanto ao paradeiro da Mirimi, não faz sentido: uma embarcação como aquela poderia afundar, para nunca mais voltar a tona, se o terreno fosse arenoso, lamacento ou formado por pedras, onde se encaixaria com o decorrer do tempo. Quando o terreno é arenoso no fundo do mar, também prende ou pode prender para sempre uma embarcação. Com a lama se fixa com mais firmeza.

Quanto ao corpo

Um corpo, que não tenha sido devorado de todo pelos peixes, é normal que venha dar à praia. Mesmo que tenha sido baleado e registrem-se outras perfurações deliberadas, para fazer escapar os gases, e assim evitar que o cadáver flutue.

E uma idéia romântica, disse um mergulhador, pensar que as ondas trazem tudo à praia. Se uma garrafa lançada do alto da Ponte Rio-Niterói leva tempo para chegar até o nível da barra, e possa até perder-se em águas paradas numa reentrância do Saco de São Francisco, ainda dentro da baia de Guanabara, o mesmo não acontece com uma pequena embarcação ─ do tipo da Mirimi ─ que busque retornar à barra, depois de alcançar a costa de Copacabana ou Ipanema.

─ Chegar até as Ilhas Cagarras não é tão simples assim ─ disse o fotógrafo Heinz Prellwitz, companheiro de Baumgarten nas pescarias e seu ex-funcionário na revista O Cruzeiro. "Ainda mais se o tempo está ruim, com uma cabeça dágua como aconteceu na quarta-feira, dia 13. Eu desisti da pescaria, mas teria impedido se tivesse pressentido (Heinz deixou um recado na secretária eletrônica cancelando).

O fotógrafo, que viajou ontem para o Nordeste, a serviço da empresa para a qual trabalha, disse que não é fácil, como alguns supõem, retornar à barra depois de se fazer ao alto mar. "É preciso conhecer o Sudeste ─ um vento chato e traiçoeiro à entrada da baia. Apavora a princípio, e é preciso deixar a embarcação entrar firme na correnteza".

'Na Capitania dos Portos, uma fonte disse, também, que na madrugada em que o Mirimi desapareceu, havia temporal e soprava a ventos Nordeste (com o Sudeste é mais fácil penetrar na baía). O barqueiro conhecia a rota, era pedreiro de profissão, mas tinha carteira de arrais amador, segundo informou sua mulher, Dona Cisaltina. Era um barco de recreio com registro na Capitania.

Casa onde Baumgarten diz ter
ficado estava alugada a empresa

Porto Alegre ─ Uma casa branca de janelas azuis, de material, simples, com um pequeno jardim na Rua Gravataí, 336, na Praia de Cassino, onde há cerca de seis meses o jornalista Alexandre von Baumgarten teria estado ─ segundo bilhete que deixou para o porteiro do seu edifício, no Rio ─ esteve alugada para a empresa Sultepa, de 6 de março a 10 de dezembro, para seus funcionários. Por ali, durante o ano de 1982, "passaram vários funcionários, numa rotatividade normal. Alguns ficavam dias ou meses, e depois saíam, por necessidade de trabalho", informou ontem um dos assessores da Sultepa de Rio Grande, Raul Ax.

Nesta mesma casa, durante esse mesmo período, explicou Raul Ax, também estiveram funcionários da Cehab e alguns da Fundação de Ciência e Tecnologia (Cientec), empresa do Estado que controla as obras que a Sultepa ─ a maior empresa de construção de estradas do Estado ─ realiza em Rio Grande: um canal ligando Pelotas a Rio Grande. A casa pertencia ao médico aposentado Ozires Carvalho, que passou-a para a filha. Maria Tereza Carvalho Moraes, e o genro, também médico, Ernani Moraes. Na secretaria da Fazenda do Rio Grande, o registro de propriedade tem o nome do casal.

Ontem, o repórter Mairo Cavalheiro esteve na residência e uma mulher loira, Maria Teresa, abriu a janelinha da porta, não quis se identificar, mas garantiu não conhecer o jornalista assassinado, ao ver uma foto dele. Seu pai, o médico Ozires, contatado pelo JB, pelo telefone, em Rio Grande, afirmou ter lido a matéria da revista Veja, mas também disse não conhecer Alexandre von Baumgarten.

A Construtora Sultepa S.A, empresa gaúcha, atua no ramo da construção civil há 26 anos, dedicando-se basicamente à engenharia pesada, como construção de estradas, portos, pontes e obras de saneamento básico. No pólo petroquímico gaúcho é responsável pela infraestrutura da estação de tratamento de efluentes líquidos.

A empresa tem um capital de Cr$ 1,6 bilhão e seu último balanço registrou, no ano passado, um faturamento de Cr$ 5,5 bilhões. O diretor-presidente da Sultepa é José Portela Nunes e há ainda outros seus membros na diretoria: os vice-presidentes Dagoberto Silveira e Sérgio Lins e os diretores Valdemar Barreto, Marco Aurélio Azambuja, José Carlos Nunes e Astir Brasil Santos e Silva.

Pelo menos uma pessoa, na Praia de Cassino, garante se lembrar de Alexandre na praia. É o cabo PM Irioci Garcia, do posto da Polícia Militar de Cassino (a cerca de 25 km de Rio Grande). Ele normalmente ficava num açougue ao lado do conhecido Bar do Alemão: "Me lembro desse cara bebendo no Bar do Alemão", garante o cabo, há 14 anos lotado em Cassino. Seu colega, cabo PM Nei Acosta, há dois meses no lugar, tem a impressão vaga de conhecê-lo, na praia, antes de ser transferido para Cassino. É que o cabo Nei ia com freqüência a Cassino. O cabo Garcia acha que viu Alexandre no verão passado.

No Bar do Alemão, apenas um dos garçons, José Barbosa, se lembra "vagamente de ter visto esse cara da foto por aí, mas não me lembro de tê-lo servido aqui no bar".

Na Sultepa de Rio Grande, um dos assessores da direção, Raul Ax, disse que vários funcionários passaram pela casa. "A pedido do JB, ele perguntou a dois dos funcionários, que lá permaneceram alguns dias, se conheceram o jornalista, mas ninguém se lembrou dele. Raul Ax disse que a empresa não permitiu que pessoas estranhas fizessem uso da casa, no período do aluguel, de março a dezembro. Também acha difícil que algum funcionário convidasse um amigo para passar.

Jornal do Brasil, quarta-feira, 2 de fevereiro de 1983

Nenhum comentário:

Postar um comentário