quarta-feira, 13 de abril de 2016

09.02.1988 - A política do feijão-com-arroz

JORNAL DO BRASIL                                        Opinião                                      terça-feira, 9/2/88 


A política do feijão-com-arroz 

Rubens P. Cysne 


Não são raras as viagens em que o momento de maior alegria e prazer se dá quando da volta para casa. Na fase de planejamento, o espírito aventureiro se excita e distrai com as possibilidades usualmente muito bem exploradas pela imaginação. No decorrer do processo, entretanto, o acaso há de dar o seu toque especial na jornada, corroborando ou não as expectativas previamente assentadas.

É bem verdade que o charme do inesperado pode ocorrer sob a forma de uma boa companhia no assento ao lado no avião (o que, convenhamos, requer uma razoável dose de sorte) ou de uma inesperada aculturação junto a um povo distante. Mas nem sempre a sorte se sobrepõe desse modo ao azar. Muitas vezes o oposto ocorre sob a forma de perda de conexões, extravio de bagagens, perda de passaporte, inadaptação aos temperos alienígenas, queimaduras de sol, etc... Nesse caso, a volta ao aconchego do lar é também a volta à paz e à tranqüilidade.

De qualquer forma, as experiências, mesmo quando não baforadas pelo lado bom do destino, trazem consigo, pelo menos se vividas por atores atentos, o necessário aprendizado que vem com o tempo. Daí a sua utilidade.

A viagem da qual agora retornamos iniciou-se, como se sabe, em 28/02/86. Não houve nenhuma bela companhia ao lado no avião (na segunda escala, a da moratória, não houve seguer outro passageiro), o passaporte para o fim do túnel foi perdido, vários extravios de bagagens foram noticiados e ninguém se divertiu como esperava. E bom também lembrar que todas as conexões foram perdidas e o próximo avião demorará pelo menos um ano (talvez dois) para chegar (o pior é que ninguém sabe dizer para onde ele vai).

De volta de tão inesperado percurso, vem a apologia do lar, representada pela economia do feijão-com-arroz. A formulação de política econômica abandona a amante heterodoxa e volta para a esposa que havia (alguns dizem, a contragosto) abandonado no início de 1986. Tratando-se de um marido que a própria teoria econômica quis bígamo por excelência, mais uma vez a opção por apenas um dos lados da gangorra (miserável gangorra que nunca pára no meio!) trará de volta os problemas que assolavam a vida do casal entre 1983 e 1986: ausência de perspectivas, desemprego e altas taxas de inflação. Mas por que necessariamente desemprego?

Teoricamente, há vários motivos que dificultam uma estabilização da inflação em patamares da ordem de 15% a 20% ao mês. O problema não é comparar o número 15 (ou 20) com o número zero, mas sim uma inflação ascendente com uma inflação estável. Quando a taxa de variação do nível de preços se eleva, vários motivos concorrem para que este processo se torne auto-sustentável. Dentre estes, incluem-se:

a) o aumento das expectativas inflacionárias, elevando os preços, salários e a aquisição de bens de consumo duráveis;

b) os repasses pela indexação;

c) a queda no valor real da arrecadação tributária do governo, haja vista o intervalo de tempo entre a arrecadação efetiva e o fato gerador do imposto;

d) a queda da demanda por moeda decorrente das inovações financeiras que costumam acompanhar a elevação das taxas de inflação;

e) a maior variação dos preços relativos, elevando o custo de informação por parte do comprador e, conseqüentemente, tornando-o menos sensível aos novos aumentos de preços.

É claro que todos esses fatos podem ser devidamente contornados com uma adequada restrição de demanda (o que, aliás, é exatamente o que se espera da política do feijão-com-arroz). Mas é claro também que isto implica uma desagradável redução da atividade econômica (principalmente devido à indexação e à instabilidade das expectativas de inflação). Em adição, um segundo problema se contrapõe à compensação monetário-fiscal. Por motivos políticos, ela costuma ser muito mais monetária do que fiscal, o que eleva as taxas de juros, inibindo os investimentos privados e a taxa de acumulação de capital no longo prazo.

Mantida a atenção que vem sendo dispensada à política de demanda (com monitoramento não apenas do governo, mas também, futuramente, de agências internacionais), o Brasil não deverá sofrer nenhum processo hiperinflacionário em futuro próximo. Mas não se deve esperar muito, também, em termos de crescimento. Se o corte do déficit público fosse significativo, crível e de conhecimento comum, seria até possível que a retomada dos investimentos privados em pouco tempo reativasse a economia. Mas com uma política em banho-maria mais calcada no aperto monetário do que no saneamento definitivo das finanças do setor público (principalmente, na questão dos subsídios e transferências), não há de se esperar uma grande elevação da oferta de empregos no setor privado.

Dentro em breve, a volta ao lar e ao feijão-com-arroz passará a se caracterizar pelo seu lado cansativo e tedioso. A afeição da ausênça terá dado lugar ao descolorido da rotina. O dilema entre recessão e hiperinflação (o que, na prática, significaria um novo congelamento) se mostrará cada vez mais explícito.

Para as pessoas físicas e jurídicas residentes no país, toda essa espera por uma solução definitiva para o processo inflacionário (ao menos no nível dos saudosos 40% ao ano vigentes entre 1973 e 1978) é claramente enervante. Além das perdas, a favor do governo, do valor aquisitivo da moeda com que transacionam, tanto firmas quanto indivíduos são obrigados a operar com uma menor quantidade de liquidez real em mãos, o que dificulta sobremaneira o seu dia-a-dia. Isso para não mencionar o efeito altamente perverso do imposto inflacionário sobre a distribuição de renda, visto que a percentagem desta última mantida em termos monetários é certamente maior nas camadas menos favorecidas da população.

Essa deterioração da ambiência para se ter uma vida menos complicada nesse país não se iniciou há pouco. As drásticas mudanças no patamar inflacionário iniciaram-se em 1979. O que preocupa, no entanto, é a demora na reversão do processo. O problema claramente transborda a concepção puramente técnica, encontrando suas raízes em fatores culturais, institucionais e políticos.

A dificuldade de contenção do déficit público, por exemplo, enquadra-se muito bem nessa visão mais ampla do processo inflacionário. Boa parte das despesas públicas reflete uma série de medidas isoladas que em muito beneficiam poucos, e em pouco prejudicam muitos. Mas como essas medidas não são poucas, acabam mesmo em muito prejudicando todos. A inflação é uma das conseqüências de atos deste tipo. Na ausência de consciência, representatividade e cobrança da maioria prejudicada, ela destrói um a um todos os percalços em seu caminho.
Rubens P. Cysne é professor da Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas.

Jornal do Brasil, terça-feira, 9 de fevereiro de 1988

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