terça-feira, 26 de janeiro de 2016

29.09.1999 - A bênção, Sacaca


A bênção, Sacaca

* Archibaldo Antunes
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Pelo telefone, minha mãe me dá a triste notícia: Sacaca morreu. Pensei de imediato na falta que ele estaria fazendo às suas plantas, como se elas pudessem lamentar essa falta mais do que os parentes do morto. Não me culpem, mas cresci imaginando Sacaca cercado pelas ervas que cultivou para assegurar esperanças e prolongar a vida.

Meu mundo ainda se resumia ao Poço do Mato quando aprendi a respeitar aquele homem imenso e simpático que nos dava a bênção como quem distribui bondade. Ficava um pouco apreensivo em imitar os outros meninos naquele cumprimento informal, sempre que o encontrávamos refestelado no Banco da Amizade, no Laguinho. E minha apreensão só passava quando ele retribuía o cumprimento com um sonoro "Deus te abençoes meu filho".

Hoje me orgulho de ter sido um desses filhos do Sacaca, ele negro e gordo, eu amarelo e mirrado. Aquelas palavras com que nos respondia com satisfação, erguendo ligeiramente a mão onde reluzia um grosso anel de ouro, pareciam nos depurar dos poucos pecados que tínhamos. A caminho de casa íamos mais calmos, agora que a força daquela mão amiga nos havia tocado.

Cresci ouvindo histórias sobre seus remédios caseiros, e na minha imaginação se foi cravando a imagem do bruxo cozinhando ervas em panelões de cobre. Meninos temem as bruxarias, acostumados a associá-las ao mal que grassa no mundo inteiro. Mas o bruxo Sacaca não me causava medo nenhum, antes me tranqüilizando a força de sua simplicidade e o poder de sua dedicação às plantas e aos homens.

Nos encontros que tivemos pela vida afora, Sacaca fortaleceu em mim a imagem da pessoa boa e íntegra que pareceu ter sido a vida inteira.

Recordo de uma fase do jornal Folha do Amapá, em que ele escreveu uma coluna intitulada O Senhor da Floresta. O nome, de muito bom gosto — e que vinha calhar perfeitamente com o novo colunista —, fora escolhido por ele próprio. Não tenho dúvidas de que seus ensinamentos tenham sido aproveitados por aqueles que padeciam de moléstias várias.

Lembro também de um episódio tragicômico protagonizado pela Polícia Federal no Amapá, que resolveu prender o Senhor da Floresta por suspeitar de uma de suas ervas. A reação popular foi imediata, moradores do Laguinho e dos bairros próximos se mobilizaram contra aquela aberração de natureza policial — e eu lamentei ter me atrasado e assim não ter contribuído com a baita vaia que levaram os agentes.

Ficou provado que Sacaca usava a planta exclusivamente para fins medicinais, e a Polícia Federal teve que conviver, por longo tempo, com a pecha de ignorante.

A notícia de sua morte me causou profunda tristeza por duas únicas razões, as quais faço questão de esclarecer:

1º) Não somos preparados, como os orientais, para encarar a morte de forma natural, admitindo que ela, antes de ser um fim, é um novo princípio.

2º) Pensamos na morte de pessoas de bem como uma possibilidade remota e cruel. Que morram os maus, bradamos ou desejamos em silêncio, mas que nos fiquem, eternamente, os mansos de espírito...

Sacaca foi um desses mansos de espírito que sempre fez das plantas o que quis, e com elas sempre quis fazer o bem. Não me consta que tenha fracassado em seus objetivos, antes tendo atingido, por seus préstimos, um grau elevado em nossa vil condição humana.

Apesar de seus conhecimentos, poucos lhe renderam homenagens em vida, e muitos sequer tomaram nota de sua valorosa presença entre nós. Mas a vida às vezes é ingrata mesmo para aqueles que são gratos à vida, pagando essa gratidão com a moeda do altruísmo.

Não devo estar errado em afirmar que o governo de João Alberto Capiberibe reverenciou a existência do Senhor da Floresta, mesmo que esse reconhecimento, no meu entender, tenha sido desproporcional à sua importância. Mas não serei eu a reclamar glórias a quem passou a vida satisfeito em ser o rei apenas do carnaval.

Foi-se o homem Sacaca e agora me pergunto: quem vai usar das ervas medicinais para aplacar as moléstias das centenas ou talvez milhares de pessoas que lhe confiavam o corpo? Quem mais será superior à truculência policial, a ponto de desmascarar essa truculência e apresentá-la como fraqueza de propósitos e equívocos de julgamento? Quem vai responder, com respeito e bonomia, ao cumprimento feito pelos meninos do Laguinho? Quem, meu caro amigo Sacaca? 
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(*Archibaldo Antunes é jornalista
e atualmente mora em Rio Branco, no Acre)

Jornal do Dia, quarta-feira, 29 de setembro de 1999

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