quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

21.11.1980 - O REINADO DA LUA



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O REINADO DA LUA

A VOZ DO ESCULTOR
POPULAR DO NORDESTE
É OUVIDA
PELA PRIMEIRA VEZ

Cleusa Maria


PARA se defender de interferência no seu trabalho, o escultor popular Nhó Caboclo já traz na ponta da língua uma expressão peculiar: "Disso você não entende, não, isso é coisa do reinado da lua." E O Reinado da Lua foi o titulo escolhido por Silvia Rodrigues Coimbra, Flavia Martins e Maria Letícia Duarte para o livro que, em 30 páginas — lançado semana passada pela Editora Salamandra — reúne depoimentos de 109 escultores populares do Nordeste, 320 fotos de Maria do Carmo Buarque de Holanda e Dalvino França.

Durante quatro anos, três dos quais dedicados a intocáveis viagens pelo interior da Bahia ao Maranhão, as pesquisadoras, com recursos precários, andando de ônibus, comendo em feiras, não se afastaram da preocupação inicial. Tratar o artesão nordestino, não através de uma reflexão sobre sua arte, mas a partir da visão dos próprios artistas. Co-autores, praticamente, foi através deles que se registrou uma realidade, um estilo de vida, uma produção e ricas visões de mundo.

E neste aspecto O Reinado da Lua pode ser considerado obra inédita na bibliografia sobre o assunto. Nos 12 capítulos em que foi dividido está clara a idéia das autoras de que são os artesãos que detêm o conhecimento de seu trabalho, de suas condições de vida, de suas questões.

Num arejado apartamento no Jardim Botânico, combinando tábuas corridas e muitas peças de esculturas populares, Flávia Martins, 31 anos, supervisora de projetos da Funabem, e Maria Letícia Duarte, 28 anos, atualmente desempregada e aguardando a chegada do primeiro filho (Sílvia Coimbra só veio ao Rio para o lançamento do livro, pois vive em Recife) falam do trabalho que as manteve juntas nos últimos anos.

— Desde o início — conta Flávia — decidimos limitar nosso trabalho aos escultores. Assim, resolvemos também considerar o autor e sua obra como singularidades. Não se pode dizer que se trate de um livro de arte. É mais abrangente. É um livro sobre o artista.

Maria Letícia acrescenta que, em momento algum, tentaram fazer uma teoria sobre a escultura popular ou as condições de vida dos escultores.

— Eles próprios fazem suas análises.

Flávia e Maria Letícia se formaram em Sociologia na PUC. Ambas sempre tiveram interesse pela arte popular. Já Sílvia Coimbra, mãe de Flávia, há mais de 20 anos lida neste campo. A partir do interesse comum por esta forma de expressão artística, as três iniciaram as pesquisas em 1975. A princípio, contaram com financiamento da Galeria Nega-Fulô de Artes e Ofícios, da qual Sílvia Coimbra era dona.

— Através da própria galeria — diz Flávia — conseguimos também um financiamento da Organization Catholique Canadienne pour le Developpement et la Paix para as primeiras despesas.

Mas, no final do trabalho, tiveram de pedir um financiamento à Finep, em forma de empréstimo. Não conseguiram uma doação, porque a Galeria Nega-Fulô tinha também objetivo comercial.

— No decorrer das pesquisas — Lembra Flávia — acabaram surgindo atividades paralelas.

Construíram, para a galeria, um acervo com peças de todos os artistas incluídos no livro, atualmente adquirido pela Prefeitura de Recife. Foi feito também um audiovisual e uma edição de Cordel (J. Borges) sobre a vida na comunidade Tracunhaém.

— Foi uma das maneiras que encontramos — completam as pesquisadoras — de proporcionar um retorno ao artista. Isto sempre nos preocupou.

Outra grande preocupação de Flávia, Maria Letícia e Sílvia é que o livro traga um reconhecimento maior para o trabalho do artista popular. Entendem que apesar desta arte ser, hoje, alvo de muitas atenções e considerações, a maioria dos criadores vive em condições precárias, numa penúria muito grande.

— O trabalho é enaltecido — constata Letícia — mas há grande distância entre o valor simbólico e o valor econômico que lhe é conferido.

Ainda assim, a escultura de madeira, no barro, na pedra, no osso, no coco, nos tecidos é uma alternativa melhor do que encarar as duras jornadas de trabalho na cana ou alugados na lavoura. O artesanato garante, pelo menos, uma liberdade que não teriam sob o jugo de patrões. A maioria escolhe a arte como sobrevivência.

— Os trabalhos chegam aos centros maiores levados pelo intermediário, pelos marchands, por pessoas da própria cidade — diz Flávia.

O escultor tem clara noção da exploração a que está submetido. Não tem, porém, poder de barganha para obter mais pelo produto de seu trabalho. Bem ou mal, o intermediário é uma garantia de sobrevivência, às vezes, de uma família inteira.

— O que fazem — continua Flávia — muitas vezes para garantir casa e comida é aumentar as horas de trabalho. Alguns chegam a trabalhar 14 horas seguidas. Aumentam a produção, mas continuam recebendo um preço irrisório por suas peças.

A realidade do escultor nordestino, suas nuanças, características comuns ou claras diferenças foram se revelando aos poucos, durante a pesquisa. A não ser um roteiro básico para as entrevistas gravadas, nada foi predeterminado. Do contato com os escultores, com suas condições de vida, com seu modo de produção, foram emergindo as unidades que permitiram o agrupamento dos 109 em 12 capítulos.

O Reinado da Lua já pode ser encontrado nas livrarias. O preço, até o final do mês, é de Cr$ 900. Em dezembro estará um pouco mais caro: Cr$ 1 mil 200.

•   •   

Em Santeiros do Massapé, primeiro capítulo, foram reunidos os depoimentos de escultores que encontraram no barro uma alternativa para o duro trabalho na cana. Anjos, São Francisco, Santo Antônio são os temas preferidos. Mas é tão grande a diferença de expressões de cada imagem, que se pode reconhecer uma peça sem a assinatura do autor.

"No canavial a situação é bem pior do que pra gente que trabalha no barro. Nos engenhos, o mais que um trabalhador consegue cortar de cana são 200 feixes. Pra 100 feixes, o preço é de seis a sete cruzeiros. Por isso, a tarefa de 200 feixes varia de 12 a 14 cruzeiros. O trabalhador só alcança esta diária se conseguir cortar 200 feixes, e isso muitas vezes só dá com a ajuda de um filho ou mais." (Manuel Gomes da Silva, o Nuca de Tracunhaém)

A Presença do Mestre, segundo capítulo do livro, mostra a importância de Vitalino na comunidade Alto do Moura. A produção se baseia nos temas do cotidiano retratados pelo velho mestre e seus primeiros discípulos. Mas as esculturas abordam outros mais atuais, como o dentista, a televisão, a Apolo-11, já incorporados à informação dos artesãos.

"Quando a gente trabalha demais, até que fica um pouco abusada. Mas sempre tem saudade de deixar de fazer. Sempre tem vontade. Mas era bom se sobrasse um tempo para a gente pensar... Mas também é bom a gente ter sempre para quem vender." (Socorro, da família de Zé Caboclo)

"Mora tudinho nessa ruinha. O que a gente faz todo mundo faz. Por exemplo, eu faço hoje uma peça, invento uma peça da minha cabeça. Se aquele ali vê, já na mesma semana ele faz a mesma, e assim os outros... O mestre — o primeiro, que foi compadre Vitalino — não tem firma registrada, que dirá os outros." (Ernestina, do Alto do Moura)

O terceiro capítulo, Animando a Brincadeira, reúne artistas que fazem esculturas para mamulengos e bumba-meu-boi. Aí, as pesquisadoras procuram mostrar a relação entre a escultura e a brincadeira. É estreita a ligação entre escultor, escultura e espetáculo.

"Foi então que fiz o Boi Misterioso. Ninguém pode botar nome igual ao dele e, até hoje, este Boi Misterioso dança. Há muitos anos eu brinco com ele. Quando ele está precisando, eu ajeito, mudo as partes, quase que faço outro..." (Capitão Pereira, o mais famoso animador de bumba-meu-boi de Pernambuco)

Em Assombrações do São Francisco, quarto capítulo, o livro reúne a temática das carrancas e fala do papel que um mercado mais amplo tem para os atuais carranqueiros. Hoje, já não se fazem carrancas para afastar a cobra dágua ou o minhocão, nem também para enfeitar a proa dos barcos que navegam pelo São Francisco. Seu destino é outro: o mercado dos grandes centros.

"Eu botei o nome de carranca porque eu penso que carranca é um bicho feio. Eu fazia a peça feito um animal com aquela cara feia. Depois, encontrando pessoas, falava que tinha barca com carranca que botava até uns penachos na cabeça para espantar o mau-olhado. De noite, antes de ver a carranca, já via o penacho que era pra chamar a sorte. Agora, isso é lenda." (Ana das Carrancas)

No quinto capítulo, Imagens de um Reduto Popular, as autoras agrupam artistas baianos, relacionando os trabalhos com o enaltecimento da arte popular na Bahia. Estes artesãos escoam sua arte no Mercado Modelo.

"A importância do Mercado Modelo que eu sei é levar minhas peças, entregar, receber meus tostões e voltar pra minha casa. Agora, o movimento dele, isso não tomo como paternidade." (Armando, de Cachoeira)

A secular tradição oleira — vem do século XVIII — que une os artistas de Maragogipinho, também na Bahia, é o tema do sexto capítulo, Em torno de Oleiros. A cidade, inteiramente voltada para as olarias, tem um processo de trabalho particular. Da criação de uma mesma peça participam várias pessoas, em etapas sucessivas. O trabalho individual cede lugar ao coletivo.

"Isso é coisa que vai passando de pai pra filho. Isso tem mais de 200 anos pra lá, que vem passando de um para outro. A criança começa a manejar com o barro e daqui a pouco se senta no torno e, sem ninguém dar bola, ela vai indo, vai indo, e daqui a pouco é artesão." (Vitorino Moreira, de Maragogipinho)

Artistas que cumprem penas em prisões aparecem no sétimo capítulo, Exercício de Liberdade. A maioria começou a fazer esculturas dentro das prisões. Instituição e artista têm concepções diferentes sobre a função desse trabalho.

"Na arte eu me encontro. Esse meu trabalho também me distrai. Essa peça composta das figuras que se soltam é capaz de realizar 12 posições diferentes, porque uma peça sai da outra. Aí dá pra se divertir com os colegas. Arte, trocado e divertimento." (Jaciara, presidiário, trabalha com jacarandá)

No oitavo capítulo, À Sombra dos Carnaubais, estão agrupados os escultores do Piauí, lugar que se destaca pelo apoio oficial mais abrangente e sistemático.

"Tudo que eu faço a Loja do Artesanato do Piauí compra, fora algumas peças que eu vendo em casa. A gente representa o Estado muito bem, mas o Estado não dá ainda o valor que a gente merece." (José Cornélio, Teresina)

Reflexos do Belo, nono capítulo, trata de artistas de várias localidades que têm como referência principal de sua produção as imagens das igrejas. A própria clientela já os procura tendo as imagens como referência.

"Desde sete anos que eu espiava pro oratório de meu avô e fazia minhas figurinhas. Esse avô foi o pai que conheci. Fez tudo pra eu aprender outra arte: nem flandeiro, nem pintor de casa, nem marceneiro eu quis ser." (João do Gado, Currais Novos)

No décimo capítulo, Em Terra de Romaria, as autoras abordam as comunidades de Juazeiro e Canindé, onde o fenômeno da romaria tem presença marcante. Apesar disso, não há um reflexo direto na produção dos artesãos.

"O preço das peças é muito baixo. Calculando tudo, não dá. Outro dia fizemos 400 peças e passamos oito dias só pra pintação. Aqui na cidade a melhoria é pouca. A romaria está aumentando cada vez mais. Então, sobre a melhoria pra igreja, pra romaria, esses mistérios eu estou entendendo. Agora, pra nós aqui, eu não posso dizer, porque não entendo. Quando eu entender o regimento eu digo." (Galdino, Juazeiro)

Artistas que trabalham com materiais não tão cumuns quanto o barro e a madeira estão reunidos no décimo-primeiro capítulo, Tudo se Transforma. Esculpem bichos, santos, figuras regionais em tecidos, pedra, coco, osso com uma habilidade artesanal surpreendente. Têm um mercado específico.

"Eu só compro o arame e, às vezes, umas fitas pra enfeitar. O mais eu arranjo dado. Outro dia, a mata me deu dos sacos de barriguda: botaram abaixo dois pés bem grandes, aí o algodãozinho se espalhou pelo canavial e eu saí apanhando. Vai dar pra encher muita cabeça de boneca." (Severina Bruno da Silva, Dona Biú)

O livro trata, em seu capítulo final, Espaço Imaginar, dos escultores de Recife e Olinda. Usam temas e materiais variados e, apesar da proximidade do grande centro, suas criações mantêm sua força peculiar. Ester têm noção exata do valor de seu trabalho.

"Quando faço uma raiz é por amor, mesmo dando muito mais trabalho, vendo por menos. Nas outras peças, tenho menos prazer que na raiz, e também dá menos trabalho, mas pela aceitação eu vendo por mais. Assim, fica o ganho pela receita." (Benedito, Olinda)

Exemplar de assinante
Caderno B
Em barro, imagem de São Pedro, peça da artesã Maria Amélia de Tracunhaém
Em juta, Anete esculpiu a mulher rendeira, Campina Grande
Peças em Jacarandá do presidiário Givaldo Cardoso Jaciara, Salvador
Escultura em madeira de Nhô Caboclo, artista de Pernambuco
As pesquisadoras Flávia Martins e Maria Letícia Duarte, o mesmo interesse pela arte popular
São Francisco e Santa Ana, em madeira, do artesão Benedito, Recife
Anjo em Barro de Severina Batista, Tracunhaém
SALAMANDRA CONSULTORIA EDITORIAL
Rua São Salvador, 33/201
Rio de Janeiro
R.J.

Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, sexta-feira, 21 de novembro de 1980

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