domingo, 31 de janeiro de 2016

03.07.2007 - Um auto de esperança

O GLOBO
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DOMINGO, 3 DE JUNHO DE 2007

Um auto de esperança

Próximo aos 80 anos, Ariano Suassuna é entrevistado por Fernanda Montenegro

André Miranda

Em pouco mais de uma hora de entrevista, Fernanda Montenegro conseguiu arrancar lágrimas de Ariano Suassuna. Mas não foi só. Arrancou também palavras sobre o Brasil, sobre a cultura, sobre as mudanças da idade e, principalmente, palavras sobre esperança.

A pedido do GLOBO, a atriz entrevistou o escritor no Teatro Municipal do Rio. Motivo, local e data não poderiam ser mais apropriados. Entre os dias 10 e 17 de junho, a cidade vai receber o evento "Ariano Suassuna — 80 anos", com exposições, mesas-redondas, mostra de filmes, lançamento de livro, espetáculos e uma vasta programação sobre o dramaturgo (as atividades estão listadas em www.arianosuassuna.com.br). Será no Municipal que o autor de "A Pedra do Reino", romance que ganha uma adaptação numa minissérie para a Rede Globo a partir de 12 de junho, vai abrir a série de homenagens, proferindo uma de suas aulas-espetáculo, marcada para o dia 10, às 12h. Tudo em comemoração aos 80 anos que ele completará no próximo dia 16.

A entrevistadora também não poderia ser mais bem escolhida. Há 50 anos, exatamente em 1957, Suassuna e Fernanda foram ao cinema juntos, assistir a "A estrada da vida", de Federico Fellini, em Recife. Um filme mágico, para dois amigos mágicos.

— Acho que o Suassuna é um criador tão amplo, tão forte, tão referencial no Brasil, que eu só posso reverenciá-lo — afirmou Fernanda.

Então, a seguir, a reverência. 

Fernanda Montenegro

             ENTREVISTA             

Ariano Suassuna

• FERNANDA: Suassuna, esses cem anos pelos quais nós passamos foram um século de grandes transformações, e o Brasil veio com os olhos pela vida afora. O que o pais ganhou no século que se foi e que pode permanecer de bom? O que, na sua memória, na sua vivência, na sua experiência, você acha que o Brasil conquistou?
SUASSUNA: Fernanda, eu procuro não ser otimista porque eu considero os otimistas ingênuos, e não sou pessimista porque eu considero os pessimistas amargos. Eu sou um realista esperançoso. Digo que, das chamadas três virtudes, eu sou fraco na fé, fraco na caridade e só me resta a esperança (risos). Sou um homem da esperança. E o que mais me toca no Brasil é que, apesar de todos os tropeços, estou notando que está diminuindo a diferença entre aquilo que Machado de Assis chamava de o Brasil oficial e o Brasil real. O Brasil real para mim é o Brasil dos despossuídos. Outro dia vi o IBGE dizendo que o governo Lula diminuiu o número de pessoas que estão abaixo da linha de pobreza para 18,4%, o indica mais baixo da História. Ainda assim é um horror, e a gente tem que ser realista, porque isso representa cerca de 40 milhões de pessoas. Mas, ao mesmo tempo, me dá uma esperança muito grande. É a coisa que mais me alegra aos 80 anos.

• FERNANDA: Dos fatos do século que passou, em qual você enxerga que se iniciou a construção de um caminho que possibilitasse a diminuição dessa diferença?
SUASSUNA: Principalmente a partir de uma figura muito controvertida que foi o Getúlio Vargas. No meu entender, ele foi derrubado não pelo que ele tinha de ruim, que era o autoritarismo, mas pelo que e!e tinha de bom, que era a preocupação de desenvolver o Brasil com capitais brasileiros e uma preocupação com os mais pobres. Com todos os defeitos que possa haver ao redor dele, Lula está retomando esse caminho. Ele é um homem do povo, pela primeira vez na História do Brasil um homem do povo chegou à Presidência da República. E, falando em amizades e admirações, devo lembrar aquele que desempenhou papel fundamental na política brasileira, por ser uma espécie de elemento de ligação entre o que Getúlio Vargas tinha de bom e o que de melhor existe em Lula: Miguel Arraes.

• FERNANDA: Você acha que, se Getúlio não tivesse fechado o Congresso, ele teria conseguido fazer, para não dizer a palavra "impor", suas leis?
SUASSUNA: E possível que não tivesse conseguido, eu não sei, posso ser muito mal interpretado ao dizer isso. Mas eu estou falando principalmente do Getúlio que foi eleito. Foi depois que ele voltou eleito ao governo, em 1951, que ele levou adiante suas grandes criações. Outro governante que é, a meu ver, um injustiçado pelo Brasil é o Dom João VI. Eu conversei com os portugueses, e as melhores figuras de Portugal são contra Dom João VI. Eles têm um ressentimento enorme por causa da Independência do Brasil. Ele elevou o Brasil à categoria de reino e foi isso que os portugueses nunca perdoaram.

• FERNANDA: Eu acho que sempre vai haver uma dualidade em torno do Dom João VI, por ele ser meio abobalhado e esperto.
SUASSUNA: Exatamente.
Continua na página 2

FERNANDA MONTENEGRO e Ariano Suassuna se encontram no Teatro Municipal, onde o escritor vai realizar uma de suas aulas-espetáculo no dia 10.

O GLOBO, domingo, 3 de junho de 2007

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