quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

11.07.1983 - O escândalo de La Plata

DENÚNCIA
ESPORTIVA
Comentário apresentado por Armindo Antônio Ranzolin sábado ao meio-dia e vinte minutos ao  microfone da Rádio Guaíba



O escândalo de La Plata

Jogo em La Plata, um triste episódio na história do Grêmio


Houve momentos, dentro do Estádio de La Plata, em que não me senti mais como um cronista esportivo. Os acontecimentos que testemunhei transcenderam a uma simples anormalidade ou à violência, por maior que seja, que possam existir dentro de um campo de futebol. Me senti como se fosse um correspondente de guerra. E, se eu tive esta sensação, posso imaginar  que não sentiram os jogadores do Grêmio, pressionados, ameaçados e encurralados dentro daquele verdadeiro campo de batalha.

Decididamente não foi um jogo de futebol. O que aconteceu foi uma demonstração de instintos tão selvagens, promovidos por pessoas tão alucinadas, que os atos e fatos praticados devem merecer uma interpretação de médicos, de psicólogos e também de autoridade que estejam acima das que têm a responsabilidade pela aplicação das leis do futebol.

Os acontecimento em La Plata foram tipicamente um caso de polícia. E, em se tratanto de cidadãos de diferentes nacionalidades, eu até acho que se trata de um caso que deve merecer a atenção das autoridades diplomáticas do Brasil e da Argentina. Os próprios argentinos que estiveram à margem dos acontecimentos, sentiram vergonha dos escandalosos lances de loucura e histeria que foram protagonizados pela selvageria dos jogadores em campo e da torcida que se deixou contagiar por eles fora do campo. Quer dizer, os incidentes não envolveram os nossos fraternais vizinhos, indiscriminadamente. É preciso ler os jornais responsáveis, como o La Nacion e o Clarín para se perceber o reconhecimento que tiveram da gravidade dos acontecimentos em La Plata. São os jornalistas argentinos responsáveis que estão usando os adjetivos contidos no que eles mesmos chamam de "Cronologia de uma noite escandalosa". Depois de relatar um a um todos os gravíssimos incidentes, o Clarín registra que "o empate foi o melhor calmante para que a maioria do público e os jogadores não se desequilibrassem totalmente".

Há também o outro lado. O lado dos que se preocupam apenas em registrar o empate obtido por sete jogadores contra onze, saindo de um resultado adverso de 2 x 3 para um incrível 3 x 3. De fato foi uma façanha inédita e para a qual não há o registro de algo igual nos anais do futebol mundial.

O Grêmio tão preocupado em não se deixar provocar e querendo apenas jogar futebol limpo cedeu tanto que acabou demonstrando uma incapacidade para reagir contra toda aquela pressão. Nos últimos quatorze minutos de jogo, depois que o Estudiantes ficou com sete jogadores, o Grêmio se encolheu. Deixou que os adversários subissem todos. E não resistiu. Faltou uma reação mais decidida. Fugindo das bolas divididas, para não ter uma perna quebrada ou não se envolver numa expulsão que poderia tirar qualquer um deles da decisão pelo título, nas finais da Libertadores, os jogadores do Grêmio deram o espaço que o Estudiantes precisava para atacar com todos os jogadores que lhe sobravam. E, assim, o Grêmio deixou escapar uma vitória tida como líquida e certa.

É difícil e até injusto julgar o comportamento dos jogadores do Grêmio à distância. O fato é que eles viam a torcida forçar o alambrado para derrubá-lo e invadir o campo. O policiamento era impotente para conter aquela turba furiosa. O Caio havia sido retirado do segundo tempo, emboscado por três jogadores argentinos no túnel de acesso aos vestiários. Um dos bandeiras, Ramon Barreto, havia sido apedrejado. Além das ameaças, havia agressões físicas já consumadas, dentro e fora do campo. E, em meio a tudo isto, os jogadores do Grêmio, enquanto eram cuspidos e chutados ouviam ameaças de que não sairiam vivos de La Plata.

Com tal atmosfera de brutalidades flagrantes, como exigir que alguém coloque uma vitória no futebol acima do amor pela sua integridade física com risco de sua própria vida. Acreditem. Não estou fazendo sensacionalismo. Há antecedentes. E muitos recentes. O jogo final do campeonato argentino entre Estudiantes e Independiente, em Buenos Aires, terminou com o passivo de duas mortes e várias pessoas feridas gravemente há poucos dias.

Diante de todo este quadro, cujos detalhes só puderam ser recolhidos daqueles que estiveram dentro daquele campo, já não posso fazer apenas um comentário na condição de cronista esportivo. Devo fazer uma avaliação mais ampla para concluir que o mínimo que poderia acontecer para o Grêmio foi deixar escapar a vitória. A menor tragédia de todas as que estavam para acontecer se consumou como um empate ainda concedido a uma equipe de apenas sete jogadores contra onze. Uma vitória do Grêmio, certamente, não deixaria de ser sangrenta.

É que havia mais do que um jogo. Havia um conflito na iminência de uma deflagração total com conseqüências imprevisíveis. E para o enfrentamento dessa situação era o Grêmio quem, de fato, tinha uma inferioridade numérica: algumas dezenas, quem sabe pouco mais de uma centena de brasileiros - entre jogadores, dirigentes, torcedores e jornalistas - contra uma enfurecida multidão, insuflada pelos jogadores do Estudiantes, com milhares de enlouquecidos torcedores dispostos a tudo.

O árbitro Luiz De La Rosa e os auxiliares Ramon Barreto e Artemio Sencion, foram verdadeiros heróis mas também acabaram envolvidos pelas anormalidades totais. Sob coação, o auxiliar Ramon Barreto acabou anulando um gol legítimo que seria o quarto do Grêmio e teria liquidado a partida. É que ele também percebeu o que poderia suceder. Ou seja, uma luta corpo a corpo em que a palavra de ordem seria uma só: salve-se quem puder.

Por isto, insisto em afirmar, não foi um jogo de futebol. Foi um escandaloso caso de polícia. Um crime cometido contra os cidadãos civilizados que habitam neste continente sul-americano e, principalmente, um crime contra o povo argentino cuja reputação passa a ser confundida e comprometida injustamente pelo comportamento daquele bando de selvagens, verdadeiros animais, que agiram soltos sexta-feira à noite em La Plata.

A denúncia está feita. O Estudiantes emporcalhou o futebol. E só não será punido se as autoridades que controlam o futebol sul-americano estiverem coniventes com as atrocidades praticadas e também quiserem transformar o futebol numa competição para interessar apenas a gangsters e mercenários.

Ainda a tragédia

Logo depois da tragédia de sexta-feira, 8 de julho inesquecível na história do Grêmio, um leitor ligou desesperado para dizer que, mesmo gremista, estava satisfeito com o 3 a 3. "Só assim os jogadores voltam com a vida da Argentina", lembrou. Os depoimentos dos que assistiram ao jogo em La Plata são coincidentes, todos confirmam o ambiente vivido pelo Grêmio. E justificam as providências da Federação, que pede até a eliminação do Estudiantes da Libertadores. Hoje, inclusive, o presidente da entidade, João Giugliani Filho, viaja para o Rio, apresenta relatório sobre os incidentes e exige o apoio da CBF. Enquanto isso não acontece, o Grêmio fica mesmo na dependência do jogo da próxima sexta-feira em Cali, entre América e Estudiantes. Um empate chega para o Grêmio, mas o medo é que o time colombiano tem três jogadores argentinos: Alfaro, Teglia e o goleiro Falcioni. Os três, segundo jornalistas colombianos que estiveram em Porto Alegre, são suspeitos de terem "amolecido" o jogo em La Plata. Não houve confirmação da suspeição, mas que este fato é preocupante para o Grêmio, sem dúvida. Mas o América também foi maltratado em La Plata e pode estar preparando uma vingança. Em todo o caso, ninguém espera nova tragédia no próximo fim de semana. Ao contrário, um resultado favorável vai provocar, certamente, o esquecimento do triste 8 de julho.
ALBERTO BLUM

Folha da Tarde, segunda-feira, 11 de julho de 1983

Um comentário:

  1. Na época morando em Curitiba, tive o privilégio e ao mesmo tempo, tristeza de vivenciar este jogo pela Rádio Guaíba. Épico e o inicio de uma nova fase do TRICOLOR!

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