terça-feira, 15 de dezembro de 2015

16.05.1986 - Encontro na USP debate descriminalização da maconha



Encontro na USP debate descriminalização da maconha

Da Reportagem Local
e da Sucursal de Brasília


Com a presença de aproximadamente 120 pessoas, foi realizado, a partir das 20h de ontem, na Sala dos Estudantes da Faculdade de Direito São Francisco, da USP (Universidade de São Paulo), localizada no largo São Francisco, zona central de São Paulo, o Debate Sobra a Descriminalização da Maconha. Participaram do debate, além do público, o diretor do Teatro Oficina, José Celso Martinez Correia, o advogado que trabalhou no caso Arnaldo Antunes (vocalista do grupo Titãs), Carlos Alberto Toron, o advogado Paulo Erix, o candidato à Constituinte pelo Partido dos Trabalhadores, Henrique Carneiro, o candidato à Constituinte pelo mesmo partido, João Batista Breda, e o presidente do Centro Acadêmico 11 de Agosto, o estudante Paulo Gonçalves da Costa Júnior.

Somente na manhã de ontem os organizadores do debate conseguiram a concessão da sala para sua realização. A direção da faculdade, em nome do professor Vicente Marota Rangel, em princípio, tentou impedir que fosse realizado o debate mas, depois de uma consulta à Congregação dos Professores, a sala foi liberada.

Segundo Martinez Correia, "a maconha é oráculo de milhões de pessoas, que quando fazem amor ou criam utilizam a maconha". Já o psiquiatra João Batista Breda afirma que a discussão sobre a droga está esgotada: "Levarei o tema à Constituinte pela sua descriminalização, e pela criminalização do álcool e do tabaco". O advogado Paulo Erix não concorda. "O assunto maconha não deve ser incluído na Constituição, qualquer lei pode resolver o problema."

Lins e Silva não apóia campanha

Apesar de favorável à descriminalização do uso da maconha, o presidente do Conselho Federal de Entorpecentes (Confen), Técio Lins e Silva, 40, não apóia qualquer campanha, seja para defender ou combater sua liberação. "Sou a favor da conscientização e do debate", afirmou ele ontem, em Brasília, ao comentar a campanha deflagrada ontem, em ato na Faculdade de Direito da USP, com apoio de políticos, artistas, intelectuais e estudantes.

Para Lins e Silva, o Brasil jamais poderia deixar de atuar repressivamente, devido a compromissos que vem assumindo diante dos organismos internacionais.

O debate, na opinião do presidente do Confen, deve ser feito para definir como a legislação brasileira deve tratar a pessoa flagrada com pequena quantidade de maconha para uso próprio.

O Ministério da Fazenda aprovou ontem o anteprojeto de lei, preparado pelo Ministério da Justiça em novembro do ano passado, que cria o Fundo de Controle ao Abuso de Drogas (Funcab). A proposta agora está pronta para seguir para o Congresso. O Funcab seria formado de recursos obtidos com a venda de beis apreendidos do tráfico.

Magistrados criticam legislação

A descriminalização da maconha não deve ser tema de discussão na Constituição, mas de reforma do Código Penal. Esta é a posição de magistrados e procuradores de Justiça ouvidos pela Folha ontem em São Paulo. Eles são contrários à liberação da produção e consumo da droga, proposta em campanha apoiada por intelectuais, artistas e sindicalistas. Para os magistrados e procuradores, mais urgente é a revisão da atual Lei de Entorpecentes, de número 6.368/76, que dá tratamento semelhante ao usuário e ao traficante de drogas.

"Não deve haver a mesma pena para os dois", afirma o desembargador aposentado Geraldo Gomes, 69, contrário à campanha pela descriminalização da droga. Contudo, o desembargador defende a despenalização para quem é preso portando menos de um grama de maconha. "Neste caso não se deve configurar crime. Menos de um grama da droga não configura dependência", afirma.

Desde 1979, alguns acórdãos foram deferidos pelo Tribunal de Alçada Criminal, baseados neste enfoque de que não há dependência em doses mínimas da droga. A partir de então, a maioria dos 25 desembargadores do Tribunal de Justiça deram voto favorável a dos casos de usuários.

A discussão não deve ser reduzida a um termo jurídico

LUÍS FRANCISCO CARVALHO Fº
Da equipe de articulistas da Folha

A questão da descriminalização da maconha tem sido discutida nos Estados Unidos e na Europa. No Brasil, mais recentemente. Os argumentos são vários: o prejuízo com o seu uso não seria tão grave à saúde, a sua aceitação social, a hipocrisia do Poder Público em proibi-la ao mesmo tempo que libera e incentiva o uso do álcool, os aspectos antropológicos e históricos do seu consumo no país etc. Os contrários rebatem, afirmando que é prejudicial à saúde, que representa o primeiro degrau na escalada das drogas e assim por diante.

O fato é que a palavra de ordem "descriminalizar a maconha" é imprecisa e reduz a discussão de um problema que é muito maior. Qual seria o seu real significado? A proposta é a de que a droga seja excluída do rol dos entorpecentes, sua produção regulamentada, com recolhimento de impostos, e a venda admitida nas tabacarias, ou seria apenas a de não se punir o usuário?

O Brasil é signatário da Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961. Nesse documento está listada a "cannabis" e existe um compromisso formal de impedir o seu uso indevido e combater o tráfico ilícito. A repercussão do rompimento desse tratado seria trágica para a imagem do país e certamente criaria problemas a nível de comércio internacional etc. Esse é um problema objetivo (apenas um deles) se a extensão da proposta é mais ampla.

Mas a grande questão a se debater é sobre o posicionamento do Estado dom relação ao usuário em geral e não só da maconha. A Lei nº 6.368/76 fixa a pena de seis meses a dois anos de detenção ao consumidor. No entanto, é amplamente reconhecido que o usuário não representa um perigo social. Pode precisar, se for portador de um quadro de dependência, de tratamento médico, jamais de cadeia.

A Espanha, por exemplo, já resolveu o problema de maneira aparentemente satisfatória: pune apenas o traficante. As autoridades argumentam que da mesma maneira que o Estado não tem legitimidade para punir a autolesão ou a tentativa de suicídio, não pode pretender punir criminalmente alguém que ingere uma substância que só pode fazer mal a sua pessoa. Isso não significa a liberalização de qualquer droga, mas o redirecionamento da repressão penal. As substâncias permanecem proibidas, persiste o combate ao tráfico e apenas os usuários não são submetidos aos rigores de uma condenação criminal ou marcados pela estigmatização social que dela advém.

O Brasil precisa de um caminho.

Folha de São Paulo, São Paulo, sexta-feira, 16 de maio de 1986

Nenhum comentário:

Postar um comentário