sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

06.11.1984 - R.E.M. O NOVO MURMÚRIO AMERICANO



R.E.M. O NOVO MURMÚRIO AMERICANO

Tal como os melhores discos dos Byrds se constituíram em monumentos do seu tempo, os dois álbuns dos REM são verdadeirascatedrais da tradição americana, estão acima de qualquer tempo ou geração, prolongando sem remorso o mito grandioso e indefinível do «American Rock-Paradise».
por Luís Peixoto

AS principais bandas amen.nas emergentes de 77 (Blondie, Ramones. Mink DeVille, Talking Heads, Television...) envelheceram ou morreram precoces umas, naturalmente outras. No período que medeia entre 1979 e 82 os americanos viveram no meio de um hiato criativo. Assistiram impávidos à autêntica rapina que os ingleses empreenderam do espírito e legado de uma das maiores bandas americanas de sempre, os Velvet Underground. Digeriram a helénica representação que se chamou Joy Division, rejeitaram sabiamente o neo-romantismo e torceram o nariz ante pop-electrónico.

Ganharam espaço e tempo para uma nova arrancada, enquanto aqui e ali, davam um ar da sua graça através de grupos vindos directamente da revolução punk ou dos novos circuitos independentes (Gun Club, Feelies, X, Urban Verbs). A recuperação, essa, teria lugar pelos finais de 1982.

Com efeito, no decorrer daquele ano, germinaria e cresceria uma mão cheia de bandas enfim capazes de fazer voltar a atenção do público para o lado de lá do Atlântico. E, enquanto os europeus filosofavam, tentando criar um novo paicadelismo, desta vez sem •hipples•, os norte-americanos davam largas ao seu pragmatismo sintetizado. No fundo mais não faziam que somar a um talento natural largas parcelas de história e tradição, dando assim origem a um estilo que bem vistas as coisas é mais feito de experiência que de novidade.

Um estilo que ainda assim denota criatividade e vitalidade quanto baste para fazer renascer as esperanças em todos aqueles que, não suportando o totalitarismo dos sintetizadores, permanecem fiéis á batida rock.

Uma avalanche de grupos

Sem mencionar Wall of Voodoo, Romeo Void e Comateens, os pioneiros do modernismo americano; esquecendo por ora Rank & File, Jason & The Scorchers, Violent Femmes ou Lone Justice, os cavaleiros mais ousados do novo «country-punk» — atente-se no eco que a Imprensa fez dos últimos discos dos Plimsouis, Fleshtones, Rain Parade, Bangles, Green on Red, Los Lobos, Lyres, Unknowns, Bengos e Dream Syndicate.

O processo desenvolve-se com uma rapidez incrível. Os grupos nascem todos os dias e amontoam-se como cogumelos. Muito naturalmente os terrenos musicais mais queridos aos americanos são recriados com um rigor e veemência que não conheciam desde o punk. Los Angeles, São Francisco e agora também Nashville, estão repletas de bandas acabadas de formar, os clubes não têm programas a medir, é o despertar da geração que nasceu e cresceu a ouvir o rádio do carro dos pais, dai que a sua música de hoje soe a qualquer coisa já anteriormente ouvida.
Face a este fenómeno os grandes magazines enviam os seus melhores especialistas para a Califórnia e o Tennessee. Contudo é de Athens, na Georgia, que chega o grande acontecimento 83/84, chama-se REM e é o melhor grupo americano desde..., bom desde há muitos anos. 

A arte de ler o passado 

REM (iniciais de Rapid Eye Movement, designação científica que Identifica o estado mais claro e activo do sonho humano) formou-se em Fevereiro de 80 pela mão inexperiente de Michael Stipe. A banda tocava em festas, um pouco ao acaso; em 1981, porém, surgiu-lhes a oportunidade de gravarem para uma editora tão obscura quanto o tema escolhido para a estrela: «Radio Free Europe». A reacção da crítica deixou o grupo petrificado. «Radio Free Europe» figurou na lista dos dez melhores singles do ano, tanto no New York Times como no prestigiado Village Voice, «Chronic Town» o mini-LP de 82 seguiria as pisadas do single sendo também citado no Village Voice. Os REM que até aí haviam  tocado apenas por gozo viram-se confrontados com uma multidão de fans e entendidos que lhes exigiam algo de mais arrojado e consiste.

Um entusiasmo compreensível de resto. «Chronic Town» é um trabalho ainda imaturo todavia possui uma energia fora do vulgar. As vozes, as harmonias e guitarras são tipicamente americanas. A construção é clássica, o «drumming» emotivo e o refrão convida ao acompanhamento. A economia de meios é notável, resultado do trabalho de Mitch Easter (actual líder dos Let's Active), o mais jovem e interessante produtor americano do momento. «Chronic Town» não é nem podia ser um disco perfeito, embora se encontre muito além daquilo que se esperaria de neófitos. Daí a expectativa que rodeou «Murmur» a primeira obra adulta dos REM.

A Imagem sonora dos Byrds

Do interior de uma capa sulista (retrato misterioso de duas «kudzu», planta introduzida nos Estados do Sul após os tempos da Depressão, aparentemente na tentativa de combater a erosão de alguns solos) a música dos REM transparece sem complexos geográficos, afirmando-se como uma arte sulista ainda que distante da mentalidade conservadora de Lynyrd Skynyrd, o protótipo dos grandes grupos do Sul.

As canções surgem em catadupa, tocantes. singularmente belas, transformando a escuta de «Murmer» numa deliciosa peregrinação a todas as grandes catedrais do rock americano. Nesta linha, Byrds é a primeira imagem sonora que nos regressa à memória. Michael Stiper jura a pés juntos só ter ouvido Byrds depois de ler os críticos, porém a analogia é demasiado tentadora. A voz rouca, a meio caminho entre Roger McGuinn e Gene Clark, temas curtos e incisivos, Rickenbackers, folk-rock, guitarras acústicas soando a eléctricas e, a maior de todas as semelhanças, o estilo «picking» tão utilizado por Roger McGuinn quando dedilhava a sua doze cordas. A analogia é de facto enorme contudo a jovem arte de REM não se esgota nela.


Um clássico americano

Para o comprovar bastará escutar a obra-prime de 84, «Reckoning». Sem fazer qualquer esforço para renegar o trabalho de «Murnier», o novo álbum vai mais longe e acentua o afastamento do grupo relativamente ao seu passado de «garage-band», um passado possível de detectar ainda que de forma remota em «Chronic Town».

Nesta sua etapa REM converteu-se a uma prática melódica mais elaborada. Os temas são menos esquemáticos, mais sólidos, com os pianos dobrando as já fabulosas linhas do baixo, as guitarras soando ainda mais em coro, a batida fluída e diversificada...

REM é, sem qualquer ponta de exagero, um dos maiores e mais excitantes grupos americanos de todos os tempos. Quanto a «Murmer» e «Reckoning» por força do brilhantismo que os envolve, irão a breve trecho transformar-se em clássicos irresistíveis. Tão irresistíveis como o são hoje «Fifth Dimension» ou «Younger Than Yesterday», os dois melhores retratos dos Byrds enquanto Jovem grupo.

Discografia 

«Radio Free Europa» (7', Hib Tone 1981)
«Chronic Town» (EP, IRS, 1982)
«Murmer» (LP. IRS. 1983)
«Talk about the passion» (EP, IRS, 1983)
«So. Central Station» (7' e 12', IRS, 1984)
«Reckoning» (LP, IRS, 1984) 

Revista Blitz, terça-feira, 6 de novembro de 1984

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